História Econômica da nova ascensão do Oriente: o caso da invasão da Ucrânia pela Rússia

Michel Deliberali Marson[1]

A invasão da Ucrânia pela Rússia nos últimos dias chamou a atenção do mundo para uma região com pouca evidência para o Ocidente. A Ucrânia é lembrada, principalmente nessa parte do mundo, por fazer parte e ser uma República da ex-União Soviética, ou seja, uma região socialista da Europa, em contraposição à Europa Ocidental e aos Estados Unidos capitalistas no período da Guerra Fria, antes dos anos 1990.

A origem desse pouco conhecimento de uma região no centro do mundo, literalmente, é resultado da forma de ensino de História no Ocidente e não apenas no Brasil. Nós, ocidentais, mesmo que latino-americanos, somos ensinados a dar importância para uma História eurocêntrica com uma sequência lógica de progresso, na qual a origem da civilização Ocidental está no Mar Mediterrâneo, na Grécia Antiga, que foi sucedida por Roma, que formou a Europa cristã, gerou o Renascimento, o Iluminismo, que desembocou na industrialização, na democracia política, e nos Estados Unidos forjou o direito à liberdade e felicidade.

O deslocamento do eixo econômico do mundo, com o início da ascensão do Ocidente, ocorreu com as novas rotas marítimas da Europa para as Índias contornando a África e a própria descoberta da América. Mas foi apenas com a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX, com a alteração da forma de produção e o crescimento econômico contínuo, que o Ocidente (leia-se Europa) ultrapassou o Oriente, principalmente a China, em importância econômica mundial.

A Ucrânia está em uma região entre a Europa e a Ásia, fazendo parte da ligação entre o Ocidente e o Oriente. A região de Donbass, em disputa na fronteira entre Ucrânia e Rússia, é uma região rica em carvão, com previsão de reservas de 10 bilhões de toneladas e outras riquezas minerais, como o petróleo (reservas estimadas em 1,4 bilhões de barris) e gás natural (estimativas de reservas de 70 bilhões de metros cúbicos). Aproximadamente um bilhão de dólares de renda do país provém da venda de terra fértil, a “terra escura” retirada das suas pradarias. O país é considerado o celeiro da Europa, já que é um dos grandes produtores de cereais do mundo, principalmente de trigo.

Um conflito na região tem impacto direto na economia mundial, principalmente europeia e asiática, com possível elevação dos preços dos combustíveis e alimentos, além de grande êxodo para outras regiões do globo, principalmente Europa Oriental. A importância da região com relação à alimentação da Europa pode ser relembrada diante da atitude da Alemanha nazista durante a Segunda Guerra Mundial, que estrategicamente via a dominação da região, rompendo o acordo com a União Soviética que marcaria seu fim e custaria milhões de vidas, como essencial para os planos de Hitler. A agricultura no sul da Rússia e na Ucrânia havia crescido rapidamente no final do século XIX e início do XX. Os planos da expansão oriental da Alemanha durante da Segunda Guerra tinham a Ucrânia no centro da meta, que libertaria a Alemanha das pressões econômicas, com o controle de férteis planícies agrícolas. No centro do planejamento alemão nazista estava Herbert Backe, um especialista em agricultura de cereais, que havia escrito uma tese de doutorado sobre o tema. Como grande conhecedor da agricultura da União Soviética, Backe apresentou suas conclusões para as regiões de forma simples, com uma linha divisória entre zonas superavitárias, que produziam mais que consumiam e deficitárias, que consumiam mais do que produziam. As zonas agrícolas superavitárias ficavam ao sul da União Soviética (Ucrânia, sul da Rússia, Cáucaso) e as deficitárias ao norte (centro e norte da Rússia, Bielorrússia e Báltico).

No jogo de soma zero nazista, no qual a Alemanha ganharia ao invadir as zonas agrícolas superavitárias da União Soviética garantindo os suprimentos para sua expansão, mas jogaria a maior parte da União Soviética para a morte por inanição com perdas incalculáveis, podemos extrair a importância da Ucrânia para a Rússia e para a Europa. No entanto, para alguns analistas, como Peter Frankopan, autor de The Silk Roads, esses acontecimentos fazem parte de algo mais importante ainda. Para Frankopan, professor de História Global na Universidade de Oxford, estamos testemunhando “as dores do parto de uma região que já dominou o panorama intelectual, cultural e econômico e que agora reemerge. Estamos vendo os sinais de uma mudança no centro de gravidade do mundo – que volta ao local onde esteve por milênios” (FRANKOPAN, 2015, p. 509).

A região atual da Ucrânia é indicada como o berço da civilização eslava[2]. A cidade de Kiev, dominada pelos rus’ de origem viking, por exemplo, não apenas era um centro de comércio nas rotas entre o Ocidente e Oriente[3] por volta do século IX e X, mas também fornecia escravos em grande escala para esse comércio de longa distância. Essa característica é tão marcante que a própria palavra “escravo”, em muitas línguas europeias, como o inglês “slave”, tem uma conexão muito próxima a palavra eslavo ou “Slav”, que passou a ser utilizada para aqueles que tinham sua liberdade tomada (MACGREGOR, 2012, p. 309-310; FRANKOPAN, 2015, p. 117). A importância dos escravos eunucos da região eslava foi tão grande que pode ser notada na língua árabe: eunuco (siqlabí) vem da referência étnica para eslavos (saqálibí) (FRANKOPAN, 2015, p. 122).

A Europa medieval não estava isolada da África e da Ásia. Descobertas recentes revelam que havia dois grandes arcos de comércio, um com começo no Iraque e Afeganistão, que se deslocava para o norte até a Rússia e terminava nas Ilhas Britânicas e o outro ao sul, expandindo do Oceano Indico da Indonésia até a África. A cidade de Kiev era a base de ligação da Europa medieval, já que por ela mercadores de Constantinopla, Iraque, Irã e Afeganistão comercializavam seus produtos para toda a Europa do Norte. As mercadorias enviadas em direção ao norte eram as especiarias e moedas de prata em troca de peles e âmbar, além de escravos, comercializados no grande mercado de Kiev. A importância da cidade para a Europa pode ser observada pelas conexões matrimoniais das famílias no poder, onde talvez a mais importante tenha sido a de Vlademir II Monomakh, príncipe de Kiev e Gytha, filha de Haroldo II, o último rei anglo-saxão da Inglaterra, morto na batalha de Hastings, em 1066, na conquista normanda (MACGREGOR, 2012, p. 307-310; FRANKOPAN, 2015, p. 129-130).

A importância da região da Ucrânia para a história econômica mundial parece ser inquestionável. Mas como a História pelo olhar do Oriente pode nos ajudar a entender o que está acontecendo com o mundo atualmente? Há realmente uma nova ascensão do Oriente, liderada pela China e seus principais parceiros comerciais, como Rússia, Índia e Oriente Médio? Há de fato uma nova Rota da Seda[4]? Pode parecer exagerada a afirmação de Peter Frankopan (2019) de que “as decisões que realmente importam no mundo hoje não são realizadas em Paris, Londres, Berlim ou Roma – como elas foram a cem anos atrás – mas em Pequim e Moscou, em Teerã e Riad, em Deli e Islamabad, em Cabul e as áreas do Afeganistão controladas pelo Taliban, em Ancara, Damasco e Jerusalém. O passado do mundo foi moldado pelo que aconteceu ao longo da Rota da Seda; assim também será seu futuro” (FRANKOPAN, 2019, p. xiii), mas os acontecimentos recentes somam a várias evidências de que é preciso observar mais de perto o que acontece naquela região, dada a importância das consequências para todas as partes do mundo.

Referências

BLOCH, Marc (2009). A sociedade feudal. Lisboa: Edições 70.

FRANKOPAN, Peter. (2015). The Silk Roads: A New History of the World. London: Bloomsbury Paperbacks.

FRANKOPAN, Peter. (2019). The New Silk Roads: A New Asia and the remaking of the World Order. New York: Vintage Books.

MACGREGOR, Neil (2012). A History of the World in 100 Objects. London: Pinguin Books.

[1] Professor Associado UNIFAL-MG. Doutor em Economia pela FEA-USP e pós-doutor em Economia pela EESP-FGV.

[2] Os eslavos modernos, descendentes do povo indo-europeu, habitantes da Europa central e oriental são os russos, bielo-russos, ucranianos (eslavos orientais), búlgaros, sérvios, croatas, macedônicos, eslovenos (eslavos meridionais), tchecos, eslovacos, poloneses (eslavos do ocidente).

[3] Para Marck Bloch (2009), grande historiador da sociedade feudal, Kiev era a ligação transversal entre os países que marginavam o Báltico, no Norte da Europa, com a regiões próximas aos mares Cáspio e Negro no Sul até o Turquestão, na Ásia, além de ser a ligação comercial de Constantinopla e da Ásia, pelo Rio Dnieper e os aterros das cordilheiras dos Cárpatos, com a região da Baviera e de Praga, na primeira idade feudal até o século XI (BLOCH, 2009, p. 89).

[4] A Rota da Seda foi uma série de rotas comerciais que ligavam o Ocidente (Europa) com o Oriente (Oriente Médio e Ásia), formando a maior rede comercial do mundo, sendo seu principal produto a seda produzida na China. O contato entre Ocidente e Oriente foi muito além do comercial, evidenciado no conhecimento, costumes e até na alimentação.