Mais um café rotineiro: a situação de refugiados pretos no Brasil

Janaína de Mendonça Fernandes[1]
Jackson Wilke da Cruz Souza[2]

Começamos mais um dia e, com ele, retomamos a rotina diária, mesmo depois de quase dois anos pandêmicos. Tomamos banho, preparamos um café, ainda sem açúcar e abrimos nossas redes sociais. Em seguida, arrebatados de nossa rotina, somos transportados para um lugar de estarrecimento: mais um dos nossos estampou as páginas policiais e midiáticas por ter sua vida perdida. Era 24 de janeiro de 2022, e o jovem Moïse Kabaganbe fora morto a pauladas no Rio de Janeiro por ter reivindicado seu salário.

Algumas pessoas podem olhar para esse caso e chegarão à conclusão de que se esse é um fato rotineiro, tal como tomar seu café preto pelas manhãs. Porém, nosso convite neste texto é fazer uma reflexão (a mais) sobre como corpos pretos são violentamente mortos e privados de seu direito essencial: viver. O “caso Moïse” expõe camadas de feridas abertas que parecem difíceis de cicatrizar na sociedade brasileira, acrescido de um fator extremamente relevante: a situação de refúgio em nosso país. Assim, cabe-nos ponderar como o Estado recepciona e aloca o refugiado negro em nosso país, e como nós, componentes dessa tessitura social,  compreendemos e nos mobilizamos nessas questões.

Podemos definir refugiado como alguém que é obrigado a sair de seu país de origem, sendo para esse indivíduo impossível regressar a este país, devido às graves violações de direitos humanos, temores, ameaças ou perseguição por raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social e opinião política. De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), estima-se que, até o final de 2019, cerca de 79,5 milhões de pessoas forçadas a se deslocar no mundo (ACNUR, 2020), o que nos evidencia o estado alarmante e urgente no cenário atual.

Para proteger tais pessoas, existem vários acordos internacionais e compromissos assinados por diferentes países, aos quais o Brasil é signatário, destacamos entre eles:

●       Declaração Internacional dos Direitos Humanos;
●       Protocolo relativo ao Estatuto dos Refugiados submetido à Assembleia Geral das Nações Unidas, a Resolução 2198 (XXI) de 16 de dezembro de 1966.
●       Convenção de 1951 e o Protocolo de 1967, em que foi assegurado que qualquer pessoa possa procurar e gozar de refúgio se assim necessitar.
●       Declaração de Cartagena de 1984, em que se expandiu o conceito de refugiado incluindo pessoas que foram obrigadas a deixar seus países por conta de ameaças às suas vidas, falta de segurança ou restrições à liberdade decorrentes de violência, agressão estrangeira, conflitos internos, violação de direitos humanos ou outras perturbações graves da ordem pública.

Em consonância com todos esses acordos e declarações internacionais, em 2017, foi promulgada a Lei de Migração (Lei nº 13.445/2017). A lei versa sobre os direitos e deveres do migrante e do visitante no Brasil, regulando entradas, estadias, permanências e aponta princípios e diretrizes à imigração no país, além de desenhar as políticas públicas acerca da questão, e completar o Estatuto do Refugiado do Brasil de 1997 (Lei nº 9.474/1997). A nova Lei de Migração no Brasil nos confere uma janela oportunidade para melhorarmos a política e os processos administrativos relativos à imigração no Brasil. A referida lei tem como objetivo facilitar a legalização da permanência dos imigrantes no Brasil, conferir de forma rápida acesso ao mercado de trabalho de forma regularizada e, consequentemente, aos direitos trabalhistas e a serviços públicos de saúde, educação e previdência social.

Para entender a dinâmica que as leis acimas citadas tentam responder, é importante apontar que, em 2020, foram feitas 28.899 solicitações da condição de refugiado ao Brasil, sendo que o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgão ligado ao Ministério da Justiça que julga os pedidos de refúgio no Brasil, reconheceu 26.577 pessoas de diversas nacionalidades como refugiadas. As nacionalidades mais recorrentes dos solicitantes entre 2011 e 2020, de acordo com dados do CONARE, são: Venezuelanos (46.412), Sírios (3.594) e Congoleses (1.050) (SILVA et al, 2021).

Diante desse cenário é importante discutirmos a imagem de uma sociedade brasileira idealizada como um país acolhedor com o estrangeiro, mesmo porque a maioria dos solicitantes de refúgio no Brasil não são brancos e tal imagem representa a realidade dos imigrantes forçados no país. O trabalho de Oliveira e Sampaio (2020) mostra justamente o contrário dessa idealização imagética de acolhimento e democracia das raças presente nos discursos oficiais entre os imigrantes forçados, os solicitantes de refúgio no Brasil.

O Estado brasileiro incentivou por um longo período de sua história uma imigração predominantemente européia, mais especificamente da Europa ocidental, com financiamentos, estruturação de colônias e leis de incentivo, com o intuito de “embranquecer” a população. Em paralelo, após a abolição, a população negra do Brasil, fruto de uma imigração forçada e escravizados, era proibida por lei a adquirir e possuir terras, de frequentar escolas, se inserir formalmente no mercado de trabalho e não foi formulada nenhuma política compensatória após séculos de escravidão (OLIVEIRA; SAMPAIO, 2020):

Isso nos leva a compreender o papel ativo da burocracia governamental nas questões ligadas à migração, muitas vezes violando direitos ao incentivar a escravização e exploração de trabalhadores, como foi o caso do período colonial. […] ao longo do tempo, o Estado brasileiro esteve atento à questão migratória na formulação de legislações de controle e coordenação do fluxo de imigrantes e, mais recentemente, na implementação de políticas públicas direcionadas à população imigrante, em um viés mais garantidor (OLIVEIRA; SAMPAIO, 2020, p. 22).

Contudo, esse viés mais garantidor observado nas leis, não se verifica na prática no dia do solicitante de refúgio, principalmente se este não se enquadra no perfil “branco europeu”. Em pesquisa realizada em 2019, realizada por meio de um acordo entre as Cátedras Sérgio Vieira de Melo e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), verifica que ainda hoje os imigrantes forçados que não se enquadram no padrão branco europeu, no Brasil possuem um discurso sobre falta de suporte, amparo e profunda insatisfação por parte dos órgãos do Estado em relação ao processo administrativo de legalização de refúgio no país.

Com relação ao convívio com a sociedade brasileira, esse migrante relata diversos preconceitos sofridos. Esta pesquisa possuía uma amostra inicial composta por 500 refugiados e foram realizadas 487 entrevistas, um total de 97,4% do previsto. Cabe detalhar que tais preconceitos ficam mais evidenciados por determinados grupos de refugiados: “Na amostra nacional, 41% dos entrevistados declaram ter sofrido algum tipo de discriminação. Ser estrangeiro e ser negro são, nessa ordem, os dois principais motivos” (ACNUR, 2021, p. 64).

Cabe ainda apontar que no Brasil a política de imigração é executada e implementada por diferentes órgãos do governo federal, o que demanda um esforço de coordenação no que tange os processos administrativos que envolve a garantia de direitos do solicitante de refúgio. Esses aspectos em particular lançam desafios adicionais e se torna uma questão a ser compreendida na análise da gestão da polícia de migração do Brasil para os formuladores de políticas públicas, como para os migrantes, no intuito de melhorar e dar celeridade aos processos administrativos de concessão de refúgio no Brasil. Hoje, de acordo com o Ministério da Justiça ((B), s/d, s/p):

“Não há um prazo específico para a realização de cada um desses procedimentos. A análise varia de acordo com a nacionalidade dos solicitantes, com a atualização cadastral desses solicitantes (possibilitando contatá-los quando necessário), com a história específica de cada solicitante, com a complexidade do caso, bem como com as informações disponíveis do país de origem. Em média, as solicitações são analisadas em 3 anos, período de tempo que pode variar para mais ou para menos, dependendo das variáveis elencadas” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA (B), s/d, s/p)

Hoje, vivemos no mundo uma crise humanitária em relação aos refugiados, tal crise nos mostra a necessidade de ações e elaboração de políticas públicas internacionais conjuntas no sentido de proteger e acolher essas pessoas que em sua maioria tiveram seus direitos humanos gravemente violados. O Brasil está imbricado nesta discussão dado que é signatário de diversos acordos internacionais que se refletem em nossa legislação. A nova Lei de Migração em conjunto com o Estatuto do Refugiado pode suscitar a melhoria dos processos administrativos relativos à solicitação de refúgio devido às questões humanitárias envolvidas. Hoje, o Estado brasileiro falha pela demora em legalizar e reconhecer o status de refugiado dessa população que bate à nossa porta e operacionalizar os direitos à saúde, emprego e educação que constam nas referidas leis. Essas pessoas buscam em nosso país segurança e respeito à dignidade humana e, tendo como base os acordos internacionais referentes à temática ao qual o Brasil é signatário, é nossa obrigação legal protegê-las.

Talvez aquele café rotineiro do começo deste texto tenha esfriado devido ao acompanhamento matinal de evidências de como criamos mecanismos seletivos de acolhimento, ao passo que imprimimos uma falsa imagem internacional de equidade racial. Em contraposição, a realidade refratada e retratada aqui é diferente para o nosso povo profissionalmente qualificado que é morto por reivindicar um salário de um emprego informal. Lembramos de alguns versos de Ellen Oléria ao cantar a situação de refúgio de haitianos pelo mundo, enquanto tentamos finalizar esse café amargo, difícil de engolir, pois: “Essa gente que também é minha gente supera / Também é minha aquela pele preta / Também é minha aquela lágrima que cai na sarjeta / Aguenta / Há em ti, há em mim / Firmeza”.

 

Referências:

Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR). Convenção da Organização de Unidade Africana (OUA) que rege os aspectos específicos dos problemas de refugiados na África. [S. l.]: ACNUR, 1969. Disponível em: http://www.cidadevirtual.pt/acnur/acn_lisboa/e-oua.html. Acesso em abril de 2021.

______. Convenção de 1951. [S. l.]: ACNUR, 1951. https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/ portugues/BDL/Convencao_relativa_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf. Acesso em abril de 2021.

______. Declaração de Cartagena. [S. l.]: ACNUR, [1984]. Recuperado de http://www.acnur.org/t3/fileadmin/Documentos/portugues/BD_Legal/Instrumentos_Internacionais/Declaracao_de_Cartagena.pdf. Acesso em abril de 2021.

______. Protocolo de 1967 Relativo ao Estatuto dos Refugiados. [S. l.]: ACNUR, [1967]. Recuperado de https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/portugues/BDL/Protocolo_de_1967_Relativo_ao_Estatuto_dos_Refugiados.pdf . Acesso em abril de 2021.

______. Perfil socioeconômico dos refugiados no Brasil. [S. l.]: ACNUR, 2019. https://www.acnur. org/portugues/wp-content/uploads/2019/05/Resumo-Executivo-Versa%CC%83o-Online.pdf, Acesso em junho de 2021.

BRASIL. Lei nº 13.445, de 24 de maio de 2017. Presidência da República, Brasília, 2017. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm. Acesso em abril de 2021.

______. Lei nº 15.527, de 18 de novembro de 2011. Presidência da República, Brasília, 2011. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/ lei/l12527.htm. Acesso em abril de 2021.

______. Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Presidência da República, Brasília, 1980. Recuperado de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6815.htm. Acesso em abril de 2021.

OLÉRIA, Ellen. O Haiti. 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=tb17M02Uvy4&ab_channel=2DUB. Acesso em: 03/03/2022.

MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Como solicitar refúgio no Brasil? [s.l]: MJ, [s.d.]a. .Recuperado de http://pensando.mj.gov.br/refugiados/informacoes/. Acesso em abril de 2021.

______. [s.l]: MJ, [s.d.]b. Justiça e segurança pública – perguntas frequentes. Recuperado de https://www.justica.gov.br/seus-direitos/refugio/perguntas-frequentes. Acesso em abril de 2021.

OLIVEIRA, E.M.M.; SAMPAIO, S. Estrangeiro, nunca mais! Migrante como sujeito de direito e a importância do advocacy pela nova lei de migração brasileira. São Paulo: Centro de Estudos Migratórios Laudes Foundation Missão Paz Conectas Direitos Humanos, 2020.

SILVA, G.J.; CAVALCANTI, L.; OLIVEIRA, T.; COSTA, L.F.L; MACEDO, M. Refúgio em Números, 6ª Edição. Observatório das Migrações Internacionais; Ministério da Justiça e Segurança Pública/ Comitê Nacional para os Refugiados. Brasília, DF: OBMigra, 2021. https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2021/06/Refugio_em_Numeros_6a_edicao.pdf, acesso em dezembro de 2021.