Crônicas de vidas erradas, por Eloésio Paulo

Resumo de Ana (1998), de Modesto Carone, é composto de duas narrativas que se entrelaçam e espelham. A Ana do título e Ciro, protagonista da outra história, são mãe e filho. Se lidas superficialmente, os textos revelam-se como o relato objetivo de uma história real: Ana foi a avó materna do autor; Ciro foi seu tio.

O refinamento do romance está justamente em recolocar a sempre nova questão da distância entre ficção e realidade. O autor, que foi professor da UNICAMP e é considerado o principal tradutor brasileiro da obra de Kafka, elaborou sua saga familiar de modo a compor uma espécie de O tempo e o vento maximamente concentrado, em que se imbricam depoimento, pesquisa e invenção.

A primeira parte consiste, principalmente, no depoimento de uma velha senhora sobre sua mãe, Ana Baldochi. É o relato de uma vida sofrida e trágica: depois de conhecer breve prosperidade econômica (mas não existencial), Ana terminou alcoólatra a ponto de obrigar o filho de cinco anos a percorrer bares para comprar-lhe cachaça sem que o pai e marido soubesse. O narrador que reproduz essa história contada por Lazinha, mãe do autor, deixa pistas sobre seu método, teorizando, no início de cada bloco narrativo, a respeito da porcentagem de ficção que devia haver na fala da depoente.

Como de hábito, a escrita de Modesto Carone aqui é ágil e exclui todo sentimentalismo. Os fatos narrados, na maioria bem tristes, deixam inteiramente ao leitor a tarefa de emocionar-se. As existências de Ana e Ciro são balizadas pelo nascimento e pela morte; ambos entraram neste mundo como crianças desamparadas e desde cedo obrigadas ao trabalho; ambos passam por um breve intervalo de prosperidade e terminam na miséria. Numa ironia trágica, os dias de Ciro terminam em meio à tarefa de vender cachaça aos mesmos bares onde, em menino, ia comprar a bebida para sustentar o vício da mãe.

O que faz desmoronar as vidas da mãe e do filho parece responder a uma pergunta difícil de evitar: onde o autor teria ocultado a inevitável influência de Kafka em seu estilo? Ao que tudo indica, a instância kafkiana produtora do absurdo existencial é o substrato econômico das vidas erradas; as existências de Ana e Ciro são conduzidas pelo mecanismo impessoal das relações econômicas. No primeiro caso, o que desencadeia a derrocada é a falência do estabelecimento comercial do marido; quanto a Ciro, cai na pobreza extrema devido à falência de sua gráfica, montada à custa de uma vida inteira de trabalho, primeiro como ajudante do pai, depois como operário, balconista de farmácia, garçom e tipógrafo.

A própria palavra do narrador dá relevo a esse imperativo econômico: “O apogeu da era Juscelino contaminou os empreendimentos de Ciro. A impressora rodava o dia inteiro, o estoque de material era farto como o depósito de um armazém e o gráfico aumentava os preços sem se preocupar com a perda de clientes.” Mais adiante: “Foi a recessão de Castelo Branco que veio selar a morte de Ciro; impossibilitado de continuar pagando o aluguel das máquinas e às voltas com o assédio dos bancos (…) as portas da gráfica serem lacradas a martelo por um oficial de justiça.”

Mas não reduzamos o romance a ficção sociológica. A exemplaridade dos destinos eleva os personagens à categoria de universais. A tragédia de Ciro, principalmente, não se reduz ao econômico: criança de colo ainda, havia sido vitimado por uma bicheira que lhe deixara o pescoço endurecido para o resto da vida; nem por isso, ele é um ser humano menos generoso, e sua caracterização mostra que o narrador o trata com grande simpatia. Ciro é comovente sem ser patético.

Nessa segunda parte do romance, os blocos narrativos são iniciados com descrições atuais (no final do século XX) do cenário, Sorocaba. O narrador revisita a cidade paulista, constatando a transformação de suas ruas e praças pela lógica do capitalismo, a camada de asfalto cobrindo todo o passado que é objeto dos relatos de Carone, soterrando a antiga singeleza de um ritmo de vida interiorano, onde no entanto a felicidade não era possível. Em uma única passagem, esse narrador que não dá a palavra a suas personagens transmite ao leitor um comentário de Ciro: “um dos prejuízos que sentia por não ter podido estudar é que não conhecida o único lugar onde havia vivido”, ou seja, a própria cidade.

Na morte de Ciro, os imperativos trágicos de sua existência depauperada impõem-lhe uma última ironia, assim relatada: “Quanto o caixão é finalmente transportado para o interior do cemitério, agarro uma das alças e constato que o revés não abandonou Ciro até o fim, pois é numa tumba sem lápide que ele some sob a terra e só no dia seguinte chega a notícia de que o corpo foi enterrado na cova errada.” O estilo de Modesto Carone, literalmente, dispensa comentários.

Onde encontrar:
Site da editora e em livrarias