“Os vícios da política latino-americana, dramatizados por um grande escritor”, por Eloésio Paulo

Ainda que o livro não tivesse outros atrativos, valeria a pena percorrer as 450 páginas de O senhor embaixador (1965) somente para chegar a sua última frase; poucos escritores conseguiram imaginar desfecho tão brilhante para um romance. Contudo, não é uma das obras mais bem logradas de Erico Verissimo, cujas grandes qualidades como romancista se desenvolvem melhor, por exemplo, no monumental ciclo de O tempo e o vento, que cobre dois séculos da história gaúcha.

O enredo de O senhor embaixador é, por assim dizer, picotado em fragmentos relativamente curtos que dão conta de episódios da vida de personagens de algum modo ligadas à embaixada, situada em Washington, de uma imaginária (e muito corrompida) republiqueta centro-americana; um analista mais complacente poderia dizer que a técnica narrativa é “cinematográfica”. Na primeira parte, intitulada “As credenciais”, o narrador relata os primeiros movimentos de Gabriel Heliodoro Alvarado, novo embaixador de Sacramento, na capital norte-americana. Essas páginas iniciais têm algo de guia turístico, o que se explica pelo fato de Verissimo haver morado, pouco antes de escrever o livro, naquela cidade, onde foi funcionário da Organização dos Estados Americanos. As personagens movem-se num cenário que às vezes é descrito com um pouco mais de minúcia que o necessário. Mas isso tem sua graça, sobretudo para quem não espera nunca conhecer a capital dos Estados Unidos.

Aos poucos, com o correr da história, vai ganhando destaque a dezena de protagonistas dos principais lances de uma trama que, afinal, se organiza em torno de uns poucos conflitos particulares e da perspectiva de uma nova revolução em Sacramento. Essa banana republic, como a define o próprio narrador, é uma síntese de todos os vícios da política latino-americana, que ao longo do século XX gravitou em torno dos interesses políticos e econômicos dos Estados Unidos, numa adesão subserviente à diplomacia do “grande bastão” de Theodore Roosevelt. Apesar de o nome Sacramento lembrar mais El Salvador, parece que a intenção de Verissimo foi fazer uma profecia sobre o destino de Cuba, que havia passado pela mais célebre revolução do continente. Não será por acaso que o enredo de O senhor embaixador se concentra em sete meses daquele mesmo ano, 1959, em que Fidel Castro e seus guerrilheiros derrubaram a ditadura de Fulgencio Batista.

Os novos revolucionários de Sacramento estão, lá pelo meio do romance, preparando seu assalto ao poder. Enquanto isso, o embaixador se diverte nas rodas sociais de Washington, tentando equilibrar-se entre duas amantes; sua mulher, já desinteressada dos encargos matrimoniais, havia permanecido no pequeno país caribenho com o restante da família. O embaixador é um ex-guerrilheiro que, no poder, tornou-se tão corrupto quanto seu compadre, o ditador de Sacramento, mas tem um charme pessoal capaz de seduzir mesmo aqueles que têm plena consciência de seu mau caráter. Uma de suas amantes é Rosalía, mulher do cônsul de Sacramento, Pablo Vivanco, e a outra é uma americana prestes a casar-se com um milionário. Vivanco, com sua mania de soltar passarinhos de papel, é uma das várias personagens secundárias muito interessantes do livro. Erico Verissimo era mestre em criar pessoas imaginárias que se parecem muito com os indivíduos de carne e osso, esse é um dos encantos de sua ficção. O embaixador sacramentenho, por falar nisso, lembra um pouco aquele inesquecível capitão Rodrigo de O tempo e o vento.

Na outra ponta do drama está Pablo Ortega, um filho da aristocracia rural da ilha que, depois de tomar seu banho de cultura na Europa, fixou-se em Washington trabalhando como secretário da embaixada. Ele também tem suas aventuras amorosas, embora menos intensas que as do embaixador, e vive uma crise de consciência por detestar a ditadura à qual serve, apoiada entusiasticamente pelo catolicismo anticomunista de seus pais. Sua adesão ao movimento revolucionário, que ocorre na última parte do romance, não é lá muito convincente.

Há outras coisas não são muito convincentes. O senhor embaixador tem um excesso diálogos carregados de didatismo; as personagens falam longamente, de um modo pouco natural na vida dos seres humanos reais, denunciando o propósito do autor de esclarecer a gente sobre a história de Sacramento – e, por extensão, o liame entre a formação de regimes corruptos nativos e o atendimento incondicional das ordens emanadas de Washington. Essas falas acabam por compor um compêndio das vicissitudes da política latino-americana e dos métodos do Departamento de Estado estadunidense para defender os interesses de seu país, ou melhor, de duas ou três empresas que explorem mão-de-obra e recursos naturais em outros países de parceria com as elites locais. Aí o escritor erra a mão, chegando a transcrever inteira uma conferência do professor exilado Leonardo Gris; em outra ocasião, o leitor talvez seja obrigado a imaginar a cara feita por Glenda Doremus, a relutante namorada de Pablo Ortega, diante de uma peroração deste que dura nada menos que uma página.

Esses arroubos didatistas podem refletir excesso de autoconfiança do escritor maduro, que se vale de uma técnica narrativa longamente apurada desde sua juventude em Porto Alegre, quando traduziu o chatíssimo Contraponto de Aldous Huxley para a antiga editora Globo, iniciando uma muito bem-sucedida carreira de editor. O manual dos vícios da política latino-americana, sem dúvida, tem sua utilidade, mas é, muitas vezes, mais educativo do que ficcional. Lendo O senhor embaixador, pode ser que os leitores ainda pouco familiarizados com a obra do escritor gaúcho fiquem com a impressão de que seu prestígio é um pouco maior do que o merecido. Melhor, então, começar o conhecimento de sua obra por Caminhos cruzados (1935) ou Incidente em Antares (1971).

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