Teve azul, mas faltou ouro, por Eloésio Paulo

É sintomático que o único personagem muito interessante de Ouro sobre azul (1875), romance hoje um pouco esquecido, seja o celibatário convicto e globetrotter folgazão Adolfo Arouca. Ele se enquadra muito mal no figurino romântico, a ponto de o estranharmos quando afivela ao rosto a máscara do burguês cheio de respeito às conveniências. Adolfo é a voz do autor a confessar que o Romantismo, aquele “cavalo esfalfado” a que poucos anos depois iria referir-se Brás Cubas, não tinha mais razão de existir no final do século XIX.

Praticamente sozinho, Adolfo salva o livro nas muitas ocasiões em que deixa sua mente travessa e sua língua ferina trabalharem à vontade. É ele quem diz as verdades a quem as precisa ouvir: claramente, o Visconde de Taunay usa-o como palmatória para fustigar a súcia de pseudoburgueses (pois no Brasil ainda não podia haver burguesia) desocupados e superficiais que comparece às páginas do livro. É a maior graça do romance, pois as pequenas querelas sentimentais de que trata o enredo já haviam sido exploradas na ficção brasileira por quase meio século. Em certa passagem, Adolfo não deixa dúvida sobre sua missão ao espinafrar o amigo Álvaro, este sim um perfeito exemplo de cavalheirismo idealizado:

– Ah! Basta que a mulher seja formosa, para que logo todos lhe deem qualidades excelentes. Nada
mais fácil do que ser anjo na moral, quando se tem tal ou qual parecença com aqueles entes
etéreos… E depois, lá vai toda aquela multidão… Prefiro ficar no meu canto… irei, durante a sua
ausência, ao Corcovado e lá meditarei sobre a vida leviana e fútil que vocês todos levam.


Ouro sobre azul é uma leitura agradável exatamente porque podemos esperar, a cada capítulo, a intervenção de Adolfo quebrando as conveniências e desnudando as ridicularias da gente rica ou pretendente a rica, cujo horizonte se reduz às conversas de salão e ao ajuste de casamentos vantajosos. Essa pequena sociedade se reúne (por duas semanas!), numa excelente chácara, ao redor do comendador Faria Alves, um velho pusilânime que tem a honra de ser o tutor (na verdade, é pai biológico) da deslumbrante Laura. Esta não só é a mulher mais linda do Rio de Janeiro, a exemplo de todas as heroínas urbanas de José de Alencar, mas também a mais endinheirada. Também tem muita personalidade, mas nesse particular perde feio para a Emília de Diva, muito mais interessante e convicta de suas qualidades pessoais situadas para lá do dinheiro.

O título do livro é uma expressão usada por admiradores de armas de fogo. Letreiros gravados a ouro sobre o aço azulado de espingardas foram, por algum motivo, considerados a definição perfeita de harmonia estética, e Taunay era engenheiro militar. A expressão é duas vezes usada a propósito da ventura de casar-se com Laura. É a gincana para ver quem terá tal sorte que movimenta o enredo bem pobre, cujo principal vilão tem um derrame bem na hora mais necessária, sepultando-se junto com o conflito, como se prenunciasse o destino de certos defuntos da política brasileira nos séculos XX e XXI, tão amante de coincidências como os ficcionistas românticos.

Mas Taunay também exibe as qualidades já conhecidas de sua obra-prima, Inocência (1872); a notável capacidade descritiva é uma delas. Também as caracterizações de personagens como uma viscondessa sem dinheiro e um comendador pernóstico evidenciam seus altos talentos como narrador. O problema é que tais qualidades combinariam mais com um romance realista, e a necessidade de agradar ao público leitor disponível da época obrigou o escritor, na maioria dos capítulos, a fazer concessões ao sentimentalismo simplório. Quando se lembrou de que nem todos os leitores eram superficiais como seus personagens, carregou nas tintas da ironia e acertou em cheio figuras típicas da “alta” sociedade carioca da época. Aí, quase sempre, pediu ajuda a seu espirituoso porta-voz. Como esteve sempre à altura do papel, Adolfo faz a leitura valer a pena. Se ele realmente não tivesse ido à festa, nem haveria romance.

 

Onde encontrar:
Sebos