Confira a entrevista com a doutora Daniela Silva de Freitas na íntegra

Entrevista – Profa. Dra. Daniela Silva de Freitas

O novo projeto do PET “Entrevista com Pesquisador” tem como objetivo divulgar pesquisas relacionadas à área de Letras e afins. A entrevista dessa semana contou com a presença da professora Dra. Daniela Silva de Freitas, e o tema escolhido foi sobre o Slam e o Rap como literatura”.

Confira nossa entrevista completa abaixo:

Abaixo vocês podem conferir um resumo das perguntas realizadas com as suas respectivas respostas:

PET Letras: Comente um pouco sobre sua trajetória acadêmica (como foi o caminho para chegar onde está? Participou de projetos na instituição em que estudava?…)

Daniela: Eu fiz a graduação na Uerj – Letras: Inglês/ Literaturas de Língua Inglesa. Na graduação, eu fiz iniciação científica com uma professora de literatura americana que pesquisa escritoras migrantes. Essa questão da imigração é muito grande nos Estados Unidos, sempre foi, desde bem antes do 11 de setembro, desde a colonização. Dos anos 1960 pra cá, essa questão se complica porque há um grande número de sujeitos que migram das antigas colônias em direção às metrópoles, pras antigas capitais do império, e eles são recebidos com políticas muito excludentes por parte dos países hospedeiros. Existem pesquisas que apontam que a maioria desses sujeitos migrantes são mulheres. A produção artística dessas mulheres migrantes é bastante significativa. A minha orientadora pesquisava a escrita dessas mulheres em contexto anglófonos e eu fazia iniciação científica no projeto dela. Depois eu fiz um mestrado com ela, em literaturas de língua inglesa. Minha dissertação foi sobre um romance de uma escritora dominicana-americana, Julia Alvarez, chamado In The Time of the Butterflies, que conta a história das irmãs Mirabal, três das quais foram mortas a mando do ditador Rafael Trujillo. É um romance que tensiona sua própria forma para poder contar a história dessas três revolucionárias, para contar como elas questionavam as representações, os lugares, as possibilidades que estavam postas na sociedade onde viviam.

Depois de terminar o mestrado, eu desanimei um pouco da carreira acadêmica. Eu sou a primeira pessoa da minha família a ir pra universidade pública, a primeira a fazer mestrado e doutorado. Na época da graduação, durante os três primeiros anos, eu ia e voltava da minha cidade – Paracambi – pro Rio de Janeiro todos os dias. Demorava duas horas pra ir de trem de Paracambi pra Uerj e três horas pra voltar da Uerj pra Paracambi. Era cansativo. Meus pais não tinham dinheiro pra me sustentar no Rio. Daí, nos últimos dois anos da faculdade, eu me mudei pro Rio, mas tinha que trabalhar pra me sustentar.

Na época do mestrado, eu trabalhava em três filiais de um curso de inglês e dava aula em duas escolas da prefeitura do Rio. De segunda a quinta, eu saía de casa às 7h e voltava às 22h, entrando e saindo de ônibus, metrô, curso, escola, universidade. Infelizmente, no fim do mestrado, eu tinha chegado à conclusão que, por mais que eu gostasse, aquela carreira não era pra mim.

Animei a voltar pra academia quando uma colega minha do Colégio Pedro II me disse que na PUC eu poderia fazer o doutorado, ganhar a bolsa e seguir trabalhando. Entrar na PUC foi uma experiência muito chocante pra mim. A PUC atende aos alunos mais ricos do Rio de Janeiro. As instalações da universidade eram muito luxuosas, de um jeito que eu nem podia imaginar (tinha dois restuarantes de comida japonesa no campus, por exemplo). Meus colegas de doutorado eram familiares e conhecidos de economistas, sociólogos, psicanalistas, músicos, cineastas, escritores, produtores musicais, curadores – profissões que eu sabia que existiam, mas que eu não conhecia ninguém que tivesse. Entrei no doutorado com um projeto que discutia literatura brasileira contemporânea – que propunha a análise de romances de Tatiana Salém Levy, Daniel Galera, Bernardo Carvalho – e saí com uma tese sobre rap e slam.

PET Letras: Na década de 70 existia um comportamento, por parte dos escritores marginais, em fazer o uso de uma linguagem crítica à ordem econômica e social do período. Passando para a época vigente, ainda há a presença desta crítica de alguma forma? Você poderia relatar exemplos?

Daniela: Então, como eu disse lá em cima, são coisas muito diferentes mesmo. Elas não necessariamente dialogam. Os professores Paulo Tonani, Alexandre Faria e João Camillo Penna, por exemplo, organizaram, em 2016, um volume inteiro de textos de vários pesquisadores que tenta dar conta dessas muitas marginalidades. Eu não ousaria simplificar em um texto curto, mas o livro vale a leitura. Chama Modos da margem: figurações da marginalidade na literatura brasileira.

PET Letras: Sabemos que você tem pesquisas sobre o rap. Como o rap atua na nossa sociedade em questão da democratização da cultura, literatura, arte, etc?

Daniela: Eu acho que o rap é uma dessas linguagens expandidas. Ele mistura muitas coisas. Tem esses estudiosos que dizem, por exemplo, que o hip-hop é um movimento artístico que engloba todas as linguagens: tem o break do b-boy, que é a dança, o grafite, que é a pintura, o DJ, que é a música, e o MC, que é a poesia. E fora isso tem a moda e os videoclipes, os jeitos de usar corpo, uma cultura visual riquíssima. Além da tal da cultura de rua: os modos de ser e de estar na cidade, de transitar, de ocupar os espaços: os eventos, as rodas culturais, as batalhas de rima.

Eu não acho que democratização seja a melhor palavra. Ela dá a impressão de que há um grupo de pessoas, uma elite cultural que produz arte, cultura e literatura, e que há um outro grupo que precisa ter acesso aos produtos dessa elite, porque é incapaz de criar qualquer coisa com qualidade artística. Acho que o que o rap no Brasil faz – e o que muito da literatura (e da arte) brasileira contemporânea faz, veja Conceição Evaristo, por exemplo – é mostrar que os principais autores da arte, da literatura e da cultura, hoje em dia, são outros, não são mais essa elite. Ninguém precisa falar pelo povo. O povo não precisa ser representado na literatura brasileira. Cada um de nós tem voz própria. A centralidade e relevância dessas vozes são reconhecidas até por circuitos culturais que antes giravam exclusivamente em torno das produções dessa elite cultural, tais como museus, premiações, editais, feiras literárias (Flip vs Flup), e até a própria universidade, a academia. Isso pode não ficar muito claro no contexto da cidade pequena, mas na cidade grande isso é muito evidente.

E também não é que o circuito da arte da elite tenha deixado de existir – é só ouvir aquela entrevista da Regina Duarte pra CNN brasileira pra entender do que eu estou falando. Contudo, se antes havia um lugar cultural central ocupado por alguém como Chico Buarque – cantor e compositor de mpb, branco, nascido e criado no Leblon, filho de Sérgio Buarque de Hollanda –, hoje em dia talvez seja alguém como o Emicida – rapper, negro, cria da periferia de São Paulo, filho da Dona Jacira –, que ocupe esse lugar. É claro que, de 1970 pra 2020, tudo é diferente – mesmo a discussão sobre “centralidade” em tempos de mídias sociais, com a dispersão, a multiplicade de centros que elas têm – mas ter alguém como o Emicida orbitando esse lugar talvez ainda possa ser considerada uma mudança significativa.

PET Letras: Você poderia nos falar um pouco sobre o slam? Explique um pouco o que é, como funcionam as batalhas, onde acontecem geralmente essas batalhas, etc.

Daniela: Você sabe que toda vez que eu tento explicar o que é slam eu falho. Posso colar aqui a definição que eu dei na tese, mas o jeito mais fácil é assistir um vídeo no YouTube ou no Instagram.

A grande diferença que eu vejo é que slam é poesia, mas é multimodal. É voz, é corpo, é presença. É a falta do microfone e o silêncio de dezenas de pessoas reunidas ao redor daquela voz. É escuta – o que é muito raro num tempo onde há sempre o ruído de muitas vozes falando juntas, umas querendo falar mais alto que as outras, querendo silenciar as demais. É performance: a impossibilidade de capturar os muito sentidos que se movem no momento em que a poesia é declamada naquela roda, ao vivo. E é compromisso, como o rap, é compromisso prático. É uma prática comunitária, coletiva, cidadã.

No Brasil o slam geralmente acontece ao ar livre. Não paga pra entrar, não paga pra apresentar. Tem a regra de que o poema apresentado não pode passar de três minutos, de que não pode ter acompanhamento musical ou usar aparato cênico, que tem que ser de autoria própria do poeta. Os slammers são julgados por membros aleatórios da plateia, recebem notas de 0 a 10. Os melhores poetas vão pra semi-finais e finais e têm que apresentar um poema novo a cada rodada. Mas há quem diga que não importa quem ganha. Até porque, em muitas das ocasiões, não há premiação pro primeiro colocado. O que importa é estar junto durante aquele tempo, falando e ouvindo poesia.

PET Letras: Entendemos que o rap pode ser um ótimo meio de disseminação da literatura. Mas como você encara a misoginia presente em diversas letras de grupos de rap famosos no Brasil?

Daniela: Essa é uma crítica muito recorrente contra o rap e a resposta que mais me agrada é a de que o rap é uma linguagem. A gente não pode dizer que o rap é misógino. Seria o mesmo que dizer que a literatura é misógina, por exemplo. O que acontece é que o rap é o retrato da sociedade, como gostam de dizer o Dr. Dre e o Mano Brown. Se a sociedade for machista, vai ter rap machista sim, porque vai ter rap feito por homens machistas. Na pesquisa pra tese, eu encontrei até rap de direita, feito em Pernambuco! Vai saber!

Mas é fato que as batalhas de rima são ambientes muito machistas. A maioria dos competidores são homens. Nas batalhas de sangue, existe a tradição de que ganha quem consegue humilhar o adversário, arrancar sangue dele, por isso o nome. Durante a pesquisa, eu percebi que muito do slam, dos rumos que o movimento tomou no Brasil, era uma resposta contra o machismo das rodas e das batalhas. A maior parte do slam de qualidade produzido hoje no Brasil é feito por mulheres. Acho que parte disso, com certeza, é reação ao machismo das rodas e das batalhas.

Mas esse papo do machismo no rap rende. Terminei de escrever essa resposta e já pensei em pelo menos três outras coisas que seria importante considerar.

PET Letras: Que conselho você daria para alguém que quer pesquisar sobre literatura marginal, rap, slam e afins?

Daniela: Que busque parceiros! Parceria, coletividade e compromisso são as palavras-chaves desse campo. Sozinho ninguém faz pesquisa, mas, se seu campo de estudos é contra-hegemônico, isso se torna ainda mais complicado.

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