Entrevista com Pesquisador: Confira a entrevista com a professora Flávia Danielle Sordi Silva Miranda na íntegra
Confira agora, na íntegra, a entrevista completa com o professora Dra. Flávia Danielle Sordi Silva Miranda sobre “A Linguística Aplicada nos estudos de professores formadores de professores para o ensino de línguas”, realizada pelo grupo PET-Letras!
PET Letras: O que mais te motiva a estudar a linguagem em pesquisas inseridas na grande área da Linguística Aplicada
FLÁVIA: Para responder a esta pergunta, vou resgatar um pouco de minha história com a Linguística Aplicada (LA). Eu tive contato com a área, logo quando ingressei na universidade, em 2005, no curso de Letras da Unicamp. Naquele momento, conhecer uma área que me levava a refletir sobre a linguagem, a partir do que eu já havia vivenciado e vivenciava e também sobre seus usos e valores para outras pessoas fez total sentido em minha vida. Na Unicamp, a LA é muito representativa, possuindo um departamento no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) exclusivo para ela, o DLA, e um programa de pós-graduação com cursos stricto sensu. Assim, estando lá, meu envolvimento foi acontecendo naturalmente, desde a graduação, quando já realizei uma Iniciação Científica em LA, sob supervisão da Profa. Maria Augusta Bastos de Mattos e segui com o mestrado e o doutorado, sob orientação da Profa. Raquel Salek Fiad. A existência desse departamento e das pessoas que atua(va)m nele, como as mencionadas, trabalhando com a linguagem sob diferentes perspectivas, foi fundamental para o meu interesse por também estudar a linguagem dentro deste campo teórico-epistemológico. Todo este meu percurso pessoal relatado, permeado por leituras, participações em eventos, contato com pesquisadores da área, entre outros aspectos, levou-me a construir um “olhar sobre a linguagem”, sob a lente da LA, que busca sempre se refazer.
Hoje, acredito que a Linguística Aplicada seja uma área que agita nossas tranquilidades ao nos fazer constantes questionamentos acerca de nossos pressupostos teórico-metodológicos, de nossos objetivos, de nossos posicionamentos como pesquisadores, entre outros aspectos. Acredito que seja essa minha maior motivação para estudar e trabalhar com a linguagem dentro deste campo: a necessidade de re(fazer), re(ver) e (re)inventar a mim mesma como pessoa-pesquisadora e pesquisadora-pessoa, pois somos indissociáveis.
PET Letras: Considerando os gêneros do discurso em contínua mudança, você considera também que o ensino de escrita, particularmente, deve acompanhá-los conforme o fluxo dessas mudanças?
FLÁVIA: Quando partimos de uma perspectiva bakhtiniana para compreender os gêneros do discurso, entendemos o caráter plástico desses gêneros. Nessa dinâmica, um ponto importante considerado por Bakhtin e o Círculo é a esfera em que esses gêneros acontecem. Assim, penso que o ensino da escrita – e aqui entendo não somente o texto alfabético, como já divisaram tantos autores, como Roxane Rojo e Jaqueline Barbosa, entre outros – deve estar inserido nos usos reais dessas esferas. Não sei se trata de “acompanhar” as mudanças, mas de se atentar ao que está acontecendo na(s) realidade(s) em que os gêneros circulam e considerar isso nas práticas de ensino
PET Letras: Com o advento das tecnologias digitais, podemos dizer que as relações dialógicas também mudaram em virtude dos novos cenários de ensino/aprendizagem de línguas?
Flávia: As relações dialógicas ou como muitos a denominam, o “dialogismo” são, novamente, um conceito bakhtiniano. Na perspectiva de Bakhtin e do Círculo elas estariam em quaisquer práticas linguísticas. Ao tematizar o conceito, Faraco (2009, p. 69) afirma que “o Círculo de Bakhtin entende as relações dialógicas como espaços de tensão entre enunciados. Estes, portanto, não apenas coexistem, mas se tencionam nas relações dialógicas.”1 Ou seja, não podemos entender o conceito no sentido reduzido de “diálogo”. Sendo assim, a cada (novo) uso da linguagem, incluindo-se aí novos cenários de ensino/aprendizagem de línguas, como grupos de redes sociais ou modelos como o Teletandem, novas relações dialógicas são (re)construídas. Vejam, porém, que as mudanças não estão necessariamente no advento das tecnologias digitais, mas nas práticas linguageiras emergentes e as tecnologias digitais podem integrar (ou não) essas práticas.
PET Letras: Qual a sua visão sobre o papel da escrita nas sociedades conectadas? O Letramento digital, na maioria das vezes, pode ser considerado como algo sempre favorável ao ensino de escrita?
FLÁVIA: Durante um certo período de tempo, com o surgimento de algumas tecnologias digitais, muitos questionaram o papel e até mesmo a permanência da escrita. O tempo e as práticas, no entanto, nos mostraram que a escrita continua sendo importante. Nesse sentido, minha visão é a de que a escrita, por questões de relações poder, ainda é um elemento-chave para aqueles que vivem nas “sociedades conectadas”, tornando-se um direito para que as pessoas possam viver nessa sociedades. É importante pensar, embora esse não seja o foco da pergunta, no que estamos denominando como “sociedades conectadas”. García-Canclini (2015), salienta a existência de um “tecno-apartheid [que] está imbricado num pacote complexo de segregações históricas configuradas por meio de diferenças culturais e desigualdades socioeconômicas e educacionais” (p. 236).2
Nesse sentido, é importante, inclusive, pensarmos sobre o que estamos considerando como “Letramento digital”. Temos várias definições para Letramento Digital, que não caberia discutir aqui, mas que vocês podem procurar em trabalhos como os de Ana Elisa Ribeiro, Carla Coscarelli e Marcelo Buzato, entre outros. Tomando uma ideia genérica de letramentos digitais, penso que eles podem potencializar algumas práticas de ensino de escrita e temos vários trabalhos, inclusive na LA, que mostram isso, por exemplo, quando se analisam tecnologias digitais e/ou gêneros digitais em contextos de ensino.
1 FARACO, C. A. Linguagem & Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
2 CANCLINI, G. N. Diferentes, desiguais e desconectados: mapa da interculturalidade. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.
Apesar disso, não é uma verdade assumir que essa associação entre ensino e tecnologias digitais seja sempre favorável, pois há outros aspectos envolvidos no ensino de escrita: questões políticas, econômicas, culturais, sociais, locais, globais etc. que precisam ser levadas em conta para se desenvolver práticas.
PET Letras: Dentre todas as contribuições dos letramentos, pensando num contexto geral, em sua opinião, como linguista aplicada, qual seria sua principal contribuição na formação de professores para o ensino de língua(gem)?
Flávia: A palavra “letramento” carrega diferentes sentidos conceituais na literatura estrangeira e brasileira. Assumo aqui que estou a considerando dentro de uma perspectiva sociocultural a que chamamos de “Novos Estudos do Letramento” e cujo trabalho de Brian Street é fundamental. Dentro dessa visão, as pesquisas têm apresentado muitas contribuições para se (re)pensar a formação de professores de línguas. Essas investigações apontam, por exemplo, a importância da etnografia e do reconhecimento de letramentos múltiplos. Muitas pesquisas têm inclusive focado na formação de professores e aqui faço menção aos vários trabalhos de Angela Kleiman e de seus orientandos.
Por isso, pensando em toda a abrangência dessa literatura sobre letramentos, as pesquisas que conheci e mesmo as que já desenvolvi ou a que estou desenvolvendo com professores de língua portuguesa em formação inicial, fica extremamente difícil destacar uma única contribuição como a principal. Talvez, a grande contribuição, em linhas gerais, tenha sido a revisão ampla de práticas redutoras na formação de professores.
Várias pesquisas, e aqui evoco trabalhos desenvolvidos pelos grupos de pesquisa da Unicamp como o Letramento do Professor ou o liderado pela profa. Raquel Fiad, como estudos desenvolvidos na UFMG e também na FURB, onde destaco as pesquisas de Adriana Fischer, estão a impactar currículos de cursos de formação e também práticas variadas que contemplam a formação inicial e continuada de professores.
PET Letras: Para você, qual a singularidade da Linguística Aplicada nas pesquisas realizadas em Letras? Que conselhos você daria a quem pretende seguir essa linha de pesquisa, como também para aqueles que estão pensando em desistir?
Flávia: A singularidade das pesquisas na Linguística Aplicada, de modo amplo, é uma questão que temos debatido há tempos. Diversas obras e autores como Moita Lopes, Branca Falabella Fabrício, Décio Rocha e Del Carmen Daher, entre outros, e também momentos de eventos científicos têm se voltado a debater sobre quais seria(m) sua(s) particularidades(s). Acredito que uma maneira produtiva de olhar para a área esteja, justamente, em reconhecer a diversidade de suas pesquisas, ao invés de tentar defini-la. Apesar disso, reconheço que, sim, há particularidades da LA, como seu caráter transdisciplinar, que é um consenso para quem realiza pesquisas, inclusive, na Letras.
Com base em boa parte desses debates e também em minha própria experiência como pesquisadora, tenho pensado, cada vez mais, que o caminho pode não estar na busca fixa pela diferença, seja nas pesquisas realizadas em Letras ou em outros cursos e programas.
Para quem pretende seguir essa área, que na verdade, não é uma linha de pesquisa, mas que engloba diversas linhas de pesquisa, como Linguagens e Tecnologias, Linguagens e Educação Linguística e Linguagens, Transculturalidade e Tradução, entre outras possibilidades de denominações, meu conselho é compreender como a área se constituiu, que linhas de pesquisa ela abriga em diferentes instituições e conhecer trabalhos diversificados dentro do campo, ou seja, estudar. É importante também participar de atividades relacionadas, como os eventos científicos. Um evento muito representativo na área é o Congresso Brasileiro de Linguística Aplicada (CBLA).
Por outro lado, quando se escolhe a LA, por tudo o que já trouxe nas questões anteriores, acaba-se escolhendo também um trabalho que, em última instância, desafia muitos paradigmas já cristalizados dentro do âmbito científico, muitos deles levantados em diferentes trabalhos de Luiz Paulo da Moita Lopes. Nesse sentido, meu outro conselho é coragem.
Por último, para aqueles que estão pensando em desistir, é importante sempre compreender os motivos pelos quais se pensa nisso e estar atento ao que nosso eu pessoa-pesquisador nos diz. É muito ruim trabalhar e, no caso específico pesquisar, algo que não esteja fazendo sentido. Penso que o que pode estar acontecendo seja a necessidade de se (re)pensar algumas escolhas e (re)construir caminhos para a pesquisa, vislumbrar novas possibilidades. Seja como for, os conselhos são os mesmos: estudar para decidir melhor e coragem para (re)fazer!
Para ambos, interessados e duvidosos, uma bússola para se trabalhar na LA pode ser nossa abordagem do “social” em nossas pesquisas. Nessa direção, uma questão relevante a ser considerada pela LA é sua preocupação com questões sociais. Já citei Moita Lopes várias vezes e o evoco novamente aqui para encerrar a entrevista, porque não há muito como se falar em LA sem mencioná-lo. Ele argumenta em favor de uma LA “responsiva à vida social” (MOITA LOPES, 2006, p. 97). Sem dúvidas, esta pode ser uma de nossas orientações. Estudar a linguagem considerando as práticas sociais, as pessoas e suas necessidades é algo instigante, além de significativo e necessário.