Confira a entrevista com a Professora Marta Gouveia de Oliveira Rovai na íntegra

Entrevista – Marta Rovai
Tema: A relação entre história e literatura:


          O novo projeto do PET “Entrevista com Pesquisador” tem como objetivo divulgar pesquisas relacionadas à área de Letras e afins. A nossa primeira rodada de entrevista contou com a queridíssima professora Marta Gouveia de Oliveira Rovai, e o primeiro tema escolhido foi sobre a relação entre História e Literatura.

            A professora Marta, conhecida como Martinha, é uma professora muito querida e conhecida na universidade federal de Alfenas. Ela dá aulas de história na UNIFAL-MG e  é pesquisadora do núcleo de estudos em história oral (NEHO), da Universidade de São Paulo, do núcleo de estudos e pesquisa de gênero e sexualidade (UNIFAL), do Formatio (processos de formação e profissionalidade docente) e líder do grupo de pesquisa história do brasil: memória, cultura e patrimônio, na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL).

É autora de artigos e livros ligados à história oral, ditadura militar, história pública, patrimônio, relações de gênero e educação. tem experiência na área de história, com ênfase em estudos sobre história oral, atuando principalmente nos seguintes temas: memória – greve de 1968 – relações de gênero e sexualidade – história oral de vida – educação – ditadura militar – patrimônio cultural.

Atualmente desenvolve pesquisa sobre histórias orais de vida de estudantes universitários homo, bi e transexuais.

PET: Como você chegou a essa carreira?

Marta: Desde pequena desejei ser professora. Adorava dar aulas para meus amigos de escola e para as minhas bonecas. Aos 10 anos tive que usar óculos e achei o máximo! Achava que eu era uma professora! Sempre tive admiração e encantamento por meus professores! No Ensino Médio, fiz um curso de técnico na Fundação Bradesco, de Redator Auxiliar, que exigia muita leitura e escrita. Gostava muito da minha professora de História, Suzan, e do professor Inaldo, de Língua Portuguesa. Eles influenciaram muito a minha escolha e fui fazer o curso de História, sempre tendo paixão pela literatura. Fiz a PUC de São Paulo, entre os anos de 1984 e 1987, e comecei a dar aula em 1986. Eu me demiti do trabalho como bancária pela manhã e à noite comecei a dar aula numa escola pública, onde fiquei por quase 20 anos. Levei a literatura para meus alunos, sozinha ou com colegas da Língua Portuguesa, nos 28 anos em que lecionei no Ensino Básico.

PET: Em sua trajetória acadêmica a literatura teve importância para sua formação como historiadora?

Marta: Eu sempre gostei de ler muito, mas por minha condição econômica, não tinha condições de comprar livros. Nas décadas de 1970 e 1980 era mais difícil para pessoas como eu terem acesso aos livros. As bibliotecas das escolas eram muito pequenas e possuíam poucas obras. Não lembro de ser levada a uma delas pelos professores e me recordo bem da vergonha que senti quando, apenas na Faculdade, me dei conta de que não sabia usar uma biblioteca! No entanto, reconheço que iniciativas solitárias de alguns docentes fizeram me apaixonar pelas poucas obras que consegui acessar, ainda no ensino fundamental: Memórias de um cabo de vassoura, de Orígenes Lessa, e Éramos Seis, da Maria José Dupret. No Ensino Médio, descobri a miséria com Capitães de Areia, de Jorge Amado, pois pouco falávamos sobre isso. A gente estava no final da ditadura; então, não havia muito estímulo à leitura e compreendo o cuidado ou temor dos professores. Minha professora de História falava muito sobre a América Latina e eu me apaixonei pela temática dos conflitos que ocorriam naquela época: descobri uma América Latina sofrida, embora não se falasse de Guerra Fria, nada disso. Foi por meio dessa docente, no entanto, que li dois livros que me marcaram como historiadora e professora: As veias abertas da América Latina, de Eduardo Galeano, e Se Me Deixam Falar, de Moema Viezzer. Este último livro conta a experiência de uma mulher, trabalhadora das minas na Bolívia sob as inúmeras ditaduras, que até então eu desconhecia. Penso que foi aí que comecei a me interessar por narrativas de vida e isso foi reforçado quando conheci um livro sobre experiências dos meninos argentinos que foram para a guerra das Malvinas, quando eu ainda estava no colégio: Os meninos da Guerra das Malvinas, de Daniel Kon, muito marcante!

Desde então, em minhas aulas, sempre usei literatura para ensinar história. Meus alunos sempre leram, pelo menos três livros por ano, para discutir processos históricos e subjetividades, enfatizando as emoções e experiências.

PET: Você considera literatura uma fonte legítima de documento? Por quê?

Marta: Sim. A literatura é uma fonte legítima, como qualquer registro deixado pelos seres humanos. Tudo diz sobre quem viveu em determinada época e espaço, e sob determinada cultura e estrutura econômica e política. A literatura é uma representação da sociedade, mesmo que não esteja comprometida em registrar a “verdade”. Ela não é um documento oficial, mas não é menos verdadeira do que qualquer outra fonte. Só deve ser entendida e analisada de forma diferente, levando em conta as questões internas do texto, a sua ficcionalidade, e as relações externas com o seu tempo. O autor tem uma posição diante do mundo em que vive e a literatura traz – intencionalmente ou não – marcas do contexto em que vive. Assim, a literatura é legítima e deve ser mais estudada, pois ela é produto e produtora do seu tempo.

PET: Qual é a relação entre narrativa histórica e o fazer literário pensando na busca por um passado histórico?

Marta: A narrativa histórica, considerando a ciência humana História, tem a preocupação de analisar documentos, sistematizar, organizar metodologicamente as diferentes fontes e teorias, para chegar o mais próximo do que possa ter acontecido. É lógico que o tempo analisado pelo historiador é tempo escoado e nada pode ser reconstituído exatamente como foi. A narrativa histórica é uma construção do possível. Por isso a importância do rigor metodológico. A literatura não tem esta preocupação. Ela lida com o imaginário, com o possível e impossível, com o real vivido e com o desejado, com a ficcionalidade e com a história. Mas isso não tira dela o caráter de interpretação de temporalidades, tanto aquela da sociedade na qual está inserida quanto a representada na obra. Pelo contrário, a torna um documento rico e desafiador ao historiador. Uma obra literária pode ser denúncia e reflexão; pode ser imaginação, mas ela sempre diz de um momento histórico: no mínimo a de seu autor que pode, de forma voluntária ou não, falar sobre isso. A literatura é também agente histórico e pode/deve ser analisada historicamente pela intervenção que faz no processo histórico e na forma como as pessoas sentem e entendem o mundo.

PET: Você escreveu artigos e capítulos sobre história oral, qual é sua importância e qual sua relação com a Literatura?

Marta: A história oral é importante porque ela traz a vida para a história. Ganham espaço as experiências e as subjetividades, claramente assumidas numa narrativa. Por ela é possível perceber situações de invisibilidade, emoções e vivências não observadas nos estudos que se prendem somente às estruturas. É possível fazer relações com a macro história, pensar as interseccionalidades de raça, sexo, religião, classe e política, por meio das histórias e memórias construídas pelas narrativas orais. Um documento de história oral nasce do diálogo e é sempre um documento novo, marcado pelo tempo vivido, narrado e da entrevista (que envolve vivências do entrevistado e entrevistador). A literatura tem um caráter mais solitário, tanto em sua produção quanto no acesso. Ela tem um fio narrativo, uma linha de raciocínio, uma organização escrita, independente do leitor. Isso não significa que ela não tenha origem na relação com o mundo e que não continue a provocar reflexões e reinterpretações. São processos diferentes que não se excluem. Ambas, história oral e literatura, podem se alimentar e assumem o caráter subjetivo, passando pelas emoções do viver e, muitas vezes, por aquilo que está no não dito ou no interdito cotidiano.

PET: Pensando em seu livro “História oral e história das mulheres: Rompendo silenciamento”, você fala acerca da importância da história oral contra forma de opressão, indiferença e esquecimento. Para você, qual papel que a história e a literatura juntas podem desempenhar nessas manifestações?

Marta: A história oral e a literatura podem se assemelhar no sentido de trazerem o que Michel Pollak chama de “memórias subterrâneas”. Leituras de mundo, emoções, traumas e vivências, muitas vezes, são ignoradas ou silenciadas, por questões políticas, raciais, de classe ou de gênero. A história oral oferece a escuta e registro histórico dessas memórias, que não são “mais verdadeiras”, mas são tão importantes para entendermos processos históricos, como outros documentos. Muitas vezes, não se trata de perguntar sobre a “verdade” das narrativas orais, mas sobre seus significados no presente. A literatura também pode cumprir esse papel, intencional ou não, de demonstrar pela ficcionalidade o “indizível” do real. A ficcionalidade não a torna menos real ou menos comprometida com o seu tempo. Pelo contrário, a literatura também nos ajuda a compreender processos, emoções e relações humanas que por outros meios o discurso mais científico deixa escapar. Ela é um documento importante para o historiador que trabalha uma das dimensões do subjetivo  e de representações sobre o mundo em contextos históricos.

PET: O que te levou a pesquisar sobre história oral? Que conselhos você daria a quem pretende se envolver com esse tema de pesquisa?

Marta: Meu interesse pelas experiências, como afirmei antes, veio de leituras sobre os meninos da guerra das Malvinas e das mulheres trabalhadoras nas minas bolivianas, na década de 1980. A questão da subjetividade, de como as pessoas vivenciaram na pele as estruturas sempre me chamou atenção. A história oral nasceu de um acontecimento que presenciei quando comecei a dar aula: numa noite, em 1986, alguns operários de Osasco, cidade onde nasci, foram à escola contar sobre uma greve ocorrida em 1968. Eles contaram que foram muito reprimidos e que foram presos; alguns colegas foram mortos. Fiquei surpresa que, tendo vivido naquela cidade, desconhecesse aquelas experiências. Então, procurei registrar as memórias daqueles homens e transformar aquilo na minha primeira pesquisa. Foi o meu TCC de História, em 1987. Depois passei a ouvir histórias de professores, sem registrá-las, mas preocupada com a escuta sobre as vivências. Educação e história oral sempre estiveram juntas para mim. No Doutorado voltei às narrativas orais, dessa vez ouvindo as mulheres que vivenciaram aquela greve em 1968, como irmãs, esposas e amigas daqueles operários, objetivando compreender eventos e sentimentos não registrados pela chamada história oficial. Depois do trabalho com as mulheres, em São Paulo, vieram os trabalhos com mulheres pescadoras; marisqueiras; mulheres que sofreram violência de gênero no Piauí; congadeiras e mulheres LGBT, em Minas Gerais. Assumi a relação entre história oral, memória e gênero como temáticas das minhas diferentes pesquisas, o que é um encontro promissor para a escuta das “memórias subterrâneas” numa sociedade predominantemente heterormativa, branca, cisgênera e patriarcal.

Aprendi muito ouvindo pessoas diferentes de mim. A história oral é um aprendizado que exige de nós humildade, em primeiro lugar, como pesquisadores. Desse aprendizado, posso sugerir algumas condutas para quem quer trabalhar com história oral:

– leia muito sobre teoria e procedimentos, pois história oral não é o mesmo que gravar e transcrever entrevistas;

– lembre-se que você não está dando voz a ninguém, mas escuta atenta. A voz pertence às pessoas;

– como em qualquer projeto, planeje o trabalho com história oral. Pergunte: por quê, para quê, para quem, como, quando, onde? O que quer saber, como proceder, metodologicamente;

– escolha um gênero de história oral: história de vida, temática, testemunhal, relato de vida. São formas diferentes que levam a procedimentos diferentes, principalmente em relação à ideia de verdade, significado e devolução ao grupo ou pessoa entrevistada;

– leia sobre as relações entre memória e história;

– a mentira; o erro e o desejo também podem ser considerados, dependendo dos objetivos de sua pesquisa;

– respeite as narrativas e não esqueça que o documento produzido tem caráter dialógico;

– não publique nada sem o consentimento do entrevistado. Ele é a pessoa mais importante de seu trabalho;

– comprometa-se eticamente com o sentido social ou político das histórias que quer pesquisar e publicizar.

Por último, lembre-se: quando passar a ouvir pessoas com delicadeza, aprenderá que, depois de conhecê-las, toda história merece ser registrada (seja pela História, seja pela Literatura) e que  você não conseguirá deixá-las para trás.

 

Agradecemos imensamente a disposição da professora Marta em aceitar nosso convite.