Confira a entrevista com o professor Ronaldo Auad na íntegra
Entrevista – Ronaldo Auad
Tema: Arte em Tempos de Distanciamento Social
O novo projeto do PET “Entrevista com Pesquisador” tem como objetivo divulgar pesquisas relacionadas à área de Letras e afins. A entrevista dessa semana contou com o estimado professor Ronaldo Auad, e o tema escolhido foi sobre a Arte em Tempos de Distanciamento Social.
Confira a entrevista completa abaixo:
PET: Tendo em mente o contexto de pandemia atual, qual a importância da Arte para o indivíduo isolado e para a sociedade como um todo?
AUAD: A arte, em todas as circunstâncias, é sempre indispensável, é sempre importante. Ela desfaz o sentimento de isolamento, pois sempre nos faz companhia. O contexto dessa pandemia tem nos permitido ouvir, ver e ler sutilezas até então não percebidas. Nos acostumamos a apreender apenas os tons mais acentuados inscritos nas linguagens com as quais convivemos cotidianamente, mas não as sutilezas, o quase silêncio que nelas reside. Para que possamos tatear esses quase-silêncios, devemos nos deixar afetar pela experiência fenomenológica. Lucia Santaella nos fala dessa experiência quando da análise da obra Interior Vermelho, de Henri Matisse, presente em seu livro Semiótica Aplicada (2002). Para que ela se realize, é preciso “(…) abrir os olhos do espírito e olhar para a pintura, como na lenda chinesa em que o observador demorou-se tanto e tão profundamente na contemplação da paisagem de um quadro, que, de repente, penetrou dentro dela e se perdeu nos seus interiores” (SANTAELLA, 2002, p. 86).
Esse nosso estar em casa nos dá a condição necessária para que possamos viver as três fases da experiência fenomenológica. Elas estão vinculadas, respectivamente, às três categorias fenomenológicas de Charles Sanders Peirce: primeiridade (acaso, possibilidade, qualidade, sentimento, originalidade, liberdade, mônada), secundidade (dependência, determinação, dualidade, ação e reação, aqui e agora, conflito, surpresa, dúvida) e terceiridade (generalidade, continuidade, crescimento, inteligibilidade).
Em relação a análise da pintura de Matisse, podemos nos permitir viver a gradação do puro sensório rumo ao plano classificatório que nos faz perceber que essa obra é um singular vinculado a um geral. Vamos às três fases dessa experiência:
[1ª] Disponibilidade contemplativa, deixar aberto os poros do olhar; com singeleza e candidez, impregnar-se das cores, linhas, superfícies, formas, luzes, complementaridades e contrastes; demorar-se tanto quanto possível sob o domínio do puro sensível. [2ª] Observar atentamente a situação comunicativa em que a pintura nos coloca; a experiência de estar aqui e agora diante de algo que se apresenta na sua singularidade, um existente com todos os traços que lhe são particulares. [3ª] Generalizar o particular em função da classe a que ele pertence. Neste nível, não se trata mais apenas de qualidades apreendidas, nem de singularidades percebidas, mas de enquadramentos do particular em classes gerais (SANTAELLA, 2002, p. 86).
Acredito que, ao realizar essa experiência no interior das nossas casas, possamos ampliar a nossa condição de sujeitos sociais mais atentos, considerando as desacelerações – e não a pressa com que deliberamos sobre as coisas − propostas pela experiência fenomenológica peirceana.
PET: Como pesquisador e estudioso da Semiótica, poderia dizer qual a contribuição dos estudos semióticos, na (re)construção do ser humano?
AUAD: Na resposta à primeira pergunta, introduzi alguns aspectos das categorias fenomenológicas de Charles Sanders Peirce (EUA,1839-1914), que embasam suas tríades sígnicas. Quanto a contribuição dos estudos semióticos, partirei, portanto, da Teoria Geral dos Signos de Peirce.
O nosso estar no mundo é movido por reações contínuas a perceptos (estímulos) que batem à porta dos nossos sentidos. A apreensão de tais perceptos, por nossa malha interpretativa, deságua em reações por nós externalizadas. Tais reações são corporificadas, no âmbito, por exemplo, dos processos de criação artística, em música, pintura, literatura, teatro, dança, cinema, vídeo.
Estamos, hoje, diante de perceptos que nos assombram, seja a partir de sonhos, conversas, notícias verdadeiras ou falsas.
Peirce nos orienta para que o impacto emocional produzido por esses perceptos nos leve a buscas que desaguem em um processo contínuo de inteligibilidade, ou seja, de um signo abrindo-se em outro signo. Esse processo foi denominado por ele de semiose, que significa ação do signo, processo que nos re(constrói) cotidianamente como seres humanos.
PET: Considera a literatura, a música, o cinema, e outras manifestações artísticas, formas de refúgio ou de descoberta de si mesmo?
AUAD: As linguagens da arte não são refúgios, mas espaços de descobertas. São casas abertas atravessadas por sons, imagens, palavras…
PET: Presenciamos a exposição de seu trabalho “MinasLíbano” na comemoração de 105 anos da UNIFAL-MG. Tendo em vista o contato presencial e físico com a Arte naquele momento e a impossibilidade de fazê-lo nos dias de hoje, de que maneira(s) poderíamos estar em contato com o mundo artístico?
AUAD: Uma exposição é um signo. Nele reside um recorte dos múltiplos aspectos de um objeto, fato que produz reações em seus intérpretes. Tais reações podem ganhar corpo em outros signos como conversas, poemas, pinturas, músicas. Mesmo quando essas reações não são externalizadas, elas existem nas mentes de seus intérpretes. Pensamento é signo abrindo-se em outro signo.
O objeto MinasLíbano teve alguns dos seus múltiplos aspectos corporificados em cada uma das obras que constituíram a exposição realizada na UNIFAL-MG. Mas ele continua sendo corporificado em outros signos em circulação nas redes digitais, como é o caso dos quarenta vídeos que também integraram a citada exposição. Deixo aqui os links de alguns deles:
Coração https://vimeo.com/201734090
Das janelas https://vimeo.com/201734257
Escrevo https://vimeo.com/202309543
Fluxus https://vimeo.com/202312282
Insônia https://vimeo.com/202312947
Jamel https://vimeo.com/200224215
Málaque https://vimeo.com/200750093
Minas 1 https://vimeo.com/202487055
Ouro https://vimeo.com/202488428
Prelúdio 18 https://vimeo.com/202489999
Podemos considerar, portanto, que o contato com o mundo artístico, nesses tempos de isolamento social, pode se dar a partir da hipermídia. Podemos realizar não somente visitas virtuais a museus, mas acessar obras de natureza digital postas em circulação. A hipermídia compreende música, artes visuais, literatura, teatro, dança e outras múltiplas linguagens da arte.
PET: Como a memória e o tempo podem ser fundamentais para o processo artístico? Nesse sentido, de que modo seria possível aproveitar o período atual para a produção artística – principalmente no que se refere à produção literária?
AUAD: A memória e o tempo são fundamentais para o processo artístico, aliás, são os elementos que dão corpo a esse processo. “O tempo é a minha matéria”, disse Carlos Drummond de Andrade em Mãos dadas.
Nos processos de criação e fruição estética não importa o tempo que se mede, cronológico, quantitativo (Chronos), e, sim, o tempo sem relógio, qualitativo (Kairos). Não nos damos conta de que ficamos quatro ou cinco horas produzindo um desenho, um conto, ou vendo uma exposição, lendo um livro.
A memória é algo que não se descola do tempo. Dissipações, breves permanências, nitidez, nebulosidades: esses são alguns dos rostos da memória. Nos processos de criação convivemos com camadas de tempo-memória, palimpsestos de sons, imagens e palavras.
No período atual em que vivemos, devemos aproveitar esse tempo sem relógio, propício para a criação estética. Tenho dado continuidade a criação dos vídeos citados na pergunta quatro desta entrevista. Eles falam de memória e esquecimento. É importante aqui dizer que a minha principal referência estética vem da literatura, não das artes visuais. Essa referência é Carlos Drummond de Andrade – de sua poesia saltam imagens, texturas, cheiros, sons e silêncios.
Para impulsionar e alimentar a criação literária de vocês, indico o memorialismo de Pedro Nava, autor de uma das mais importantes obras sobre o tempo e a memória na literatura brasileira: Baú de Ossos, 1972; Balão Cativo, 1973; Chão de Ferro, 1976; Beira-Mar, 1978; Galo das Trevas, 1981; O Círio Perfeito, 1983; Cera das Almas, póstumo, incompleto, 2006.