Confira a entrevista com a doutora Maria Clara Pivato Biajoli na íntegra

 

Entrevista – Maria Clara Pivato Biajoli

O novo projeto do PET “Entrevista com Pesquisador” tem como objetivo divulgar pesquisas relacionadas à área de Letras e afins. A entrevista dessa semana contou com a presença da professora Dra. Maria Clara Pivato Biajoli, e o tema escolhido foi sobre a A Representação de Personagens Femininas em Obras Literárias.

Confira nossa entrevista completa abaixo:

Abaixo você pode conferir a transcrição completa da entrevista: 

PET: Então, vou dar início à nossa entrevista, eu quero que você comente um pouco sobre sua trajetória acadêmica, como que foi o caminho para chegar onde você chegou?

Maria Clara: A minha trajetória é um pouco errática, eu não… a minha primeira graduação não foi na Letras. Foi na História, na verdade, lá na UNICAMP. E logo depois, eu emendei o Mestrado e quando eu terminei o Mestrado eu estava um pouco, enfim, cansada, eu acho. Eu queria experimentar coisas novas, e aí eu consegui um estágio no museu nos Estados Unidos. Aí eu fui morar lá, para trabalhar nesse museu, e foi uma experiência super legal, mas o que mudou minha vida ali, era que esse museu ficava ali no interior do estado de Massachusetts, não tinha muita coisa para fazer, um frio danado, uma neve horrorosa, então eu basicamente, para passar meu tempo, né, nas minhas horas vagas, eu lia muito e eu ia nas lojas, na livraria local, e eu comprava livros dessas edições de bolso que são baratinhas, né. E eu ficava lendo, lendo e aí o conhecimento que eu tinha de Literatura Inglesa que era… não era muito grande, mas, assim, cresceu muito nessa época, e eu percebi que depois do meu período lá trabalhando no museu eu estava mais interessada na Literatura do que na História. Então quando eu voltei, eu decidi que eu queria seguir para essa área. 

E aí então eu prestei vestibular de novo, aí entrei na Letras. E aí quando eu estava no segundo ano da Letras, eu acho, eu prestei o Doutorado e fiz as duas coisas ao mesmo tempo, né. Terminei a graduação em Letras e fui tocando o Doutorado e,  então, é uma trajetória um pouco irregular, diferente do que a gente vê. 

PET: Na sua graduação, você participou de algum grupo, de algum projeto de pesquisa, iniciação científica?

Maria Clara: Participei, em minha graduação de História, logo no meu primeiro ano, eu estabeleci contato com uma professora que me convidou para trabalhar junto com ela em uma pesquisa que ela estava desenvolvendo. E aí para participar desta pesquisa eu escrevi um projeto de iniciação científica, aí a gente mandou para a FAPESP na época, né, aí eu fiz dois anos de iniciação científica. Dessa iniciação científica, eu já  fiz a minha monografia, que aqui na UNIFAL a gente chama de TCC, e depois desta monografia também eu já desenvolvi o projeto que eu fui fazer no Mestrado. 

PET: Você enfrentou alguma dificuldade durante a graduação, por exemplo, financeira? Como era? Você chegou a morar em república? Como foi?

Maria Clara: Não, eu tenho a sorte de ter passado na Universidade na cidade onde meus pais moram. Ou azar, pois na época eu queria mesmo era ter saído de casa…  mas em termos financeiros isso foi muito tranquilo, né, porque aí eu não precisava, enfim, eu não precisei trabalhar e o dinheiro que eu ganhava, quando eu conseguia a bolsa de iniciação científica, ele era meu, assim, eu não precisava pagar nenhum tipo de conta com ele, mas também essa questão financeira foi um determinante na Universidade em que eu escolhi, porque eu passei na UNICAMP e passei na USP também e eu tinha um sonho de estudar na USP, mas São Paulo, apesar de não ser longe de Campinas, né, é uma cidade muito cara, já era cara na época, e meu pais não tinham condições de, enfim, de me sustentar lá e aí então eu optei por fazer na UNICAMP, que obviamente é uma Universidade tão boa quanto, né, porque eu decidi que eu queria me dedicar totalmente aos estudos, porque se eu tivesse que ir para São Paulo, eu teria que trabalhar e estudar. Então aí foi uma decisão bem calculada, digamos assim, mas sem arrependimentos, eu acho que deu super certo.

PET: Como estudar o gênero e personagens femininas em literaturas de diferentes períodos históricos?

Maria Clara: Olha, a questão de gênero é uma questão que, obviamente, desde que existe a figura do homem e da mulher é uma categoria, digamos assim, de análise que a gente pode utilizar para estudar. E não só a Literatura, mas a História, a Sociologia,  a Antropologia de qualquer momento, né? Digamos assim , o único cuidado que eu digo é que gente tem que prestar muita atenção para não projetar em períodos históricos diferentes conceitos e percepções que são nossas e atuais, né. Então, uma coisa que eu sempre estou dizendo para os meus alunos e, assim,  a gente tem um conceito, que foi inventado no século XIX, que tem uma carga muito negativa de homossexualidade, esse conceito carrega com ele também uma questão de uma doença, de um desvio, né. Então, isso significa que não existia relações entre duas pessoas de um mesmo sexo antes, que isso foi um  datado um pouco no século XIX ? Não, obviamente isso existia, mas quando a gente vai estudar, por exemplo, a relação dos gregos antigos com este tipo de prática, a gente não pode usar o conceito de homossexualidade, porque aí isso seria um erro, um  anacronismo, como a gente chama na História. Então, a mesma coisa para os estudos de gênero, eu não posso olhar para um texto de Literatura Medieval ou de um texto de  Literatura clássica, cobrando posicionamentos do Movimento Feminista do século XIX e do século XX, né? Então a gente tem que tomar muito cuidado na hora de avaliar e de analisar essas produções para não esperar delas mais do que aquele momento histórico estava pensando e produzindo. Ou seja, a gente tem que tomar muito cuidado para não projetar no passado, os nossos conceitos, nossos entendimentos do presente, a gente tem que buscar o máximo possível trabalhar dentro dos conceitos que eles tinham naquele momento. 

Então, é super interessante, eu gosto bastante de trabalhos de gêneros na Literatura de qualquer período. É uma linha que eu gosto bastante e que eu sigo, mas é complicado, porque a gente sabe, por exemplo, que existe um choque cultural, aquela questão de alteridade, quando a gente vai estudar uma produção literária de uma cultura não ocidental, mas a gente tem que lembrar que esse mesmo tipo de alteridade também existe quando você vai estudar um texto de quinhentos anos atrás, de dois mil anos atrás, àquelas pessoas são outras para gente, elas não funcionam na mesma moldura de pensamento que a agente  funciona, né? Então, é super válido estudos de gêneros para qualquer período, mas quanto mais a gente volta para o passado, no que é mais distante da gente, mais cuidado a gente tem que ter.

PET: A obra “Juvenília” reúne parte da produção literária de Jane Austen e Charlotte Bronte. Ambas autoras possuem personagens femininas com representações fortes, comente um pouco sobre o amadurecimento da escrita de Jane Austen e se houve mudança na representação das personagens? 

Maria Clara: Sabe que os estudos de “Juvenília” é uma coisa relativamente recente,  da década de 90, por exemplo. Teve um movimento muito forte de recuperação e publicação da “Juvenília”, para quem não sabe “Juvenília” são os escritos que os autores escreveram, obviamente, na sua infância, adolescência, antes deles se tornarem escritores de verdade, com muitas aspas. Então esses escritos de “Juvenília”, eram considerados, até então, pela crítica como curiosidade, né, como, “Ah! É uma coisinha bonitinha”, né. É a partir do fim da década 80 e começo da década de 90, que a gente tem o movimento da crítica de republicar muitas dessas coisas que estavam perdidas, enfim, e de analisar com o mesmo rigor da crítica literária que você aplica para qualquer obra que a gente chama madura, também entre aspas, né. E com isso você abre uma porta enorme para um entendimento e  eu não quero usar a palavra evolução, por que dá uma impressão que é uma linha, né, e que o autor começa em um estágio amador, e ele sempre vai melhorando, melhorando, né, eu não gosto de usar essa palavra, mas o trabalho com a “Juvenília” indica processos, adianta imagens, adianta estilos e preocupações. Eu gosto sempre de comparar, por exemplo a Literatura de “Juvenília”, ela era considerada menor, infantil, digamos assim, né,  mas se você pega um músico, um pianista, sei lá, como o Mozart, que escreve uma peça super complexa, com sete anos de idade, ninguém chama aquilo de “Juvenília”,  ele fala assim: “olha que gênio com sete anos de idade ele já estava compondo”, né, óperas, enfim. Então tem uma diferença de tratamento. E aí, então, o que essas novas edições, né,  essa edição que você está se referindo, que é da Penguin com a Companhia da Letras, é uma edição conjunta, com partes da Juvenília de Jane Austen e com partes da Juvenília da Charlotte Bronte, que ela escreveu com o irmão e as irmãs dela, esse tipo de edição é recente, né, no Brasil é de 2016, eu acho. Essa edição é bem recente! Isso demonstra o interesse crescente dos críticos sobre esse tipo de material, né. E aí respondendo a sua pergunta, então, sobre como a gente trabalha com isso, no caso da Jane Austen, se houve um amadurecimento. No caso da Jane Austen, foi ao contrário, quando os críticos foram ler a “Juvenília” dela, que são várias histórias, a grande maioria são sátiras, além delas serem muito engraçadas, elas são muitos ácidas, elas têm um humor muito refinado, que é impressionante para uma menina de 11 anos de idade, que é quando ela começa a fazer isso, né. Aí então, os críticos se surpreenderam como vários temas que a Jane Austen estava trabalhando nos romances adultos dela já estavam presentes nessa “Juvenília”. Então você vê aí uma constante em termos de preocupação de temas em que ela trabalhava, de olhar crítico, porque ela escreve sátiras aos romances góticos, aos romances sentimentais, que eram muitos populares na época dela, que ela vai continuar fazendo isso, esse tipo de crítica, nos romances adultos, mas de uma outra maneira, né. E também de percepções que a gente também encontra nas obras dela, como a questão da mulher, a sociedade que existe basicamente em torno da questão do dinheiro, a relação de casamento, por exemplo, é basicamente um mercado, né, uma  compra e venda, uma troca, todo mundo ali é mercenário, ninguém quer casar com uma pessoa pobre. Então toda essa lógica dessa sociedade, que é muito egoísta e que funciona muito na base da questão financeira, isso já aparece na “Juvenília”. Então ao invés de agente falar de um certo amadurecimento, que também tem essa conotação de melhoria, de evolução, né,  a gente percebe que a Jane Austen, quando ela passou a escrever os romances da vida adulta dela, ela encontrou outras ferramentas, outros estilos para trabalhar com os mesmos temas. E aí, que vem um debate: por que que ela sentiu necessidade de fazer isso? A “Juvenília”, como eu falei, é composta basicamente por sátiras bem exageradas, assim, bem engraçadas também, de repente ela sentiu que uma sátira não era mais o suficiente para passar aquilo que ela gostaria de passar, né. Então, não é um sentido de que ela evoluiu ou de que ela tenha superado esse gênero. Tem algumas pessoas que acham, por exemplo, que ela se afastou do estilo da sátira para escrever um romance mais contido, entre aspas, em que ela pudesse deixar as críticas dela mais entre as linhas e menos aparentes para ela conseguir ser publicada, porque imagina uma mulher escrever uma sátira escancarada… era um negócio complicado, né? Então, para ela conseguir ser publicada, para obra dela ser lida, é aquela coisa do entendedores entenderão, as pessoas que tivessem a capacidade de pegar a linha fina do romance dela, ia perceber que no fundo eles são tão afiados quanto a “Juvenília”, né? Então, é uma coisa muito interessante, super recomendo para quem gosta desse tema da escrita dos autores adolescentes, é muito rico. 

No caso das irmãs Bronte, que é essa edição que você mencionou, que tá junto, né? A “Juvenília”, por exemplo, serviu para mostrar para os críticos, um pouco para desconstruir o mito do isolamento que a agente tem sobre essas irmãs. Até então as pessoas olhavam para a geografia dos romances das irmãs Bronte, que se traça sempre no norte da Inglaterra, na região que chamam de The Moors, que são as charnecas, e aí os críticos falavam assim “ah, elas… os romances delas, das três irmãs, se passam sempre nessa região, porque elas foram criadas ali, elas nunca viajaram, elas estavam isoladas”. Então essa região, essa geografia, era vista como uma parede, um muro que encerrava, cercava essa obra literária. Quando a “Juvenília” foi descoberta e publicada, os críticos encontraram histórias sobre países fictícios, que não existem, mas que pela  descrição geográfica deles, eles se passam no sudeste Asiático, na África, então… e nisso eles eram crianças escrevendo e da onde surgia a referência para eles produzirem esses países imaginários? Muito provavelmente dos relatos dos viajantes durante o século XIX, que é o grande apogeu do imperialismo inglês, né. Então elas podem não ter viajado e saído daquela região fisicamente, mas elas com certeza tiveram acesso a todo um material sobre outros lugares do mundo. Então, se você pega um romance delas hoje com esse conhecimento, você passa a perceber que a delimitação geográfica, ali no norte da Inglaterra no romance delas, não é mais uma coisa imposta pelo isolamento, é uma escolha. Deixa de ser um muro e passa a ser um cenário, passa a ser um palco. E aí passa então a ter um função dentro daquela narrativa, né?! Então a geografia, que sempre foi considerada uma limitação, agora ela é vista como algo que tem muito a nos dizer  sobre essas obras e isso graças a descoberta da “Juvenília”.

PET: Hum, muito interessante essa parte da Jane Austen, isso me fez lembrar até uma pergunta. Para você resolver fazer outra graduação, que é a Letras, foi a Jane Austen que te levou a fazer esse curso? 

Maria Clara: Na verdade foi, quando eu decidi fazer letras, eu já tinha mais ou menos uma ideia na cabeça, que era sobre a fan fiction de Jane Austen, né, só que eu não me sentia capaz. Aí foi uma insegurança muito grande minha de, tendo feito graduação em História e Mestrado na História, achar que eu ia segurar um Doutorado na Literatura e, apesar das áreas terem muita coisa em comum, eu achava que eu precisava de uma base maior. Eu conheço pessoas que fizeram isso, enfim, parabéns para elas, eu não tive essa firmeza de espírito, digamos assim. Então, eu decidi fazer Letras antes, mas eu já entrei na Letras com a ideia do projeto, já trabalhando para escrever o projeto, tanto quando estava no segundo ano eu já prestei o Doutorado, porque era um objetivo muito específico, né? Eu vou até apontar uma coisa que até pega mal, mas, enfim, eu vou admitir que como que eu já fui fazer o curso com essa ideia, esse caminho direcionado pro doutorado na Literatura, eu confesso que eu não dei muita bola para as disciplinas de Linguística e  Linguística Aplicada, sabe, então, eu não posso nem falar que é um segredo que vai ficar entre a gente, porque isto aqui é uma entrevista, né?! Então… mas, assim, estou fazendo a minha mea-culpa aqui de, na época, para meus professores de Linguística eu peço desculpas, porque eu poderia ter sido uma aluna melhor e não fui, mas… escolhas, né? (risadas).

PET: A pergunta que vou fazer agora é justamente sobre a fan fiction. O que te levou a pesquisar, a querer pesquisar sobre a fan fiction em Jane Austen? E você poderia explicar sobre a fan fiction e também sobre a sua pesquisa nessa parte? 

Maria Clara: Beleza, explico. – quantas horas vocês têm pra me escutar? (risadas)

PET: Não, tá tranquilo. Enquanto não parar de gravar, ta ótimo! (risadas)

Maria Clara: Beleza! É… Bom, eu não tinha ideia que fan fiction existia antes de eu ir morar nos Estados Unidos. Era uma coisa que pra mim, “x”, eu não sabia que existia mesmo. E aí, como eu falei pra vocês, eu ia me distrair lá na livraria local. Comprando livros, enfim, né, pra passar meu tempo durante aquele inverno tenebroso. E aí um dia eu estava lá na livraria e eu já gostava de Jane Austen, já tinha lido os livros dela todos e aí eu fui lá na livraria pra ver se eu achava coisas novas pra ler e eu dei uma passadinha pela estante onde tinha Jane Austen. E aí um livro lá me chamou a atenção, que era um romance que o título era “O diário de Mr. Darcy”, alguma coisa assim. E aquilo me deixou curiosa porque tem uma experiência minha de infância… eu não sei se vocês chegaram a ler na época que vocês estavam na escola ainda, mas um dos meus livros preferidos quando eu estava no ginásio, hoje Ensino Fundamental II, né, era um livro que se chamava “Hora da Luta”, que contava a história de um rapaz de 16 pra 17 anos numa cidadezinha pequena que apaixonou por uma menina. E depois o mesmo autor publicou essa história pela visão da menina, que chamava “O diário de Lúcia Helena”. Então pra quem gosta de literatura juvenil, eu recomendo demais, são duas histórias, assim, muito fofas, muito lindas e me marcou muito. E aí então quando eu entrei nessa livraria lá nos Estados Unidos e vi um livro chamado “O Diário de Mr. Darcy”, isso imediatamente fez um “click” na minha cabeça e me lembrou dessa história que eu gostava de ler, né, na escola e eu pensei assim: “olha que interessante, então a mesma história contada pelo ponto de vista de uma outra personagem.” E aí eu comprei esse livro. Só que aí quando eu comprei esse livro, eu descobri, né, que existia toda uma tradição, digamos assim, de pessoas que escreviam histórias a partir, principalmente, de “Orgulho e Preconceito” da Jane Austen. E aí, então, eu comecei a comprar cada vez mais. Alguns eram horrorosos, assim, muito ruins. Mas eu achava muito interessante a forma como as pessoas interagiam com a obra literária através da reescrita. Então eu fui comprando vários, fui montando um acervo, né? Então quando eu voltei pra casa, eu já tinha decidido que o que eu queria estudar era isso, porque… tem outra coisa também, né, a Jane Austen é uma escritora, dentro da literatura inglesa, muito importante. Assim, a gente não tem ideia aqui no Brasil do quão respeitada ela é lá fora. Eu poderia comparar, assim, com Machado de Assis pra gente, né? Os críticos tradicionais falam assim que em primeiro lugar vem Shakespeare e em segundo lugar vem Jane Austen. Por conta disso, você tem uma quantidade absurda de trabalhos feitos sobre ela, de estudos. Então é muito difícil a gente achar um caminho não trilhado e esse caminho do estudo da fan fiction era uma coisa relativamente nova, né, e que eu decidi ir por aÍ.

Então, basicamente o que é fan fiction? É quando fãs escrevem histórias utilizando personagens e argumentos e temas de algum outro livro que eles gostam muito ou de um filme ou de um seriado. Normalmente as pessoas associam a fan fic com ficção científica especialmente por conta do… daquele seriado “Guerra nas Estrelas”, né? Os filmes do Star Wars… não, Star Trek… enfim, tem os filmes do Star Wars e tem o seriado do Star Trek, né? Eu não sei a tradução dos dois, diferenciar em português, desculpem as pessoas que gostam deles. Enfim, a trilogia, a primeira trilogia do Star Wars, e o seriado do Star Trek foram os grandes combustíveis, digamos assim, pra fan fic, que não foi inventada nesse momento, mas ganha muito impulso e fica muito popular. Quando chegou a internet, isso se tornou um negócio absolutamente gigante, porque todo mundo pode criar em sites, em blogs suas histórias ou postar suas histórias em comunidades online de fan fic, porque se tem uma coisa muito importante na fan fic é que ela circule de graça. É meio que um pré-requisito. E aí uma coisa que diferencia um pouco a fan fic de Jane Austen, em cima da obra da Jane Austen, é que vários autores migraram pro âmbito do mercado editorial e começaram a publicar romances. Então hoje em dia, você tem uma diferença grande entre a fan fic publicada nas comunidades online de fãs de Jane Austen e esse universo dos romances publicados, que tem que pagar, né, enfim… Respondi? Tinha mais alguma coisa? (risadas) Já me perdi agora.

PET: Acho que era isso, era aquilo sobre sua pesquisa e sobre a fan fiction, né?

Maria Clara: Ah!! Sobre a minha pesquisa eu queria falar uma coisa. Como é que transformei a fan fic num objeto de pesquisa de crítica literária, né?  Eu obviamente não fiz um projeto de comparação no sentido de “eu vou pegar esses romances e vou comparar com Jane Austen”, porque tirando um ou outro, que eu posso até recomendar, a grande maioria vai sair perdendo, porque, enfim, a Jane Austen, se a gente pode usar o termo gênio pra literatura, eu gosto de usar pra ela. Mas a questão que eu pensava era assim: imagina que você assistiu um filme e aí depois alguém te pergunta assim “você gostou do filme?” e aí você fala assim “nossa adorei!”; “por quê?”. E aí você começa a explicar porque você gostou desse filme. Você vai usar trechos do filme que vão indicar aquilo que você gostou mais, nesse seu relato pra esse seu amigo, explicando porque você gostou do filme. Esses recortes indicam, então, a maneira como você entendeu aquele filme. Então, pra mim, a fan fiction, quando esses autores pegam determinados pedaços do romance original pra explorar, pra desenvolver, pra tentar contar a mesma história nos dias de hoje ou pra contar essa mesma história através de uma outra personagem, enfim… Isso pra mim é um registro da maneira como elas entenderam o romance original, o que que elas gostaram no romance original, o que que elas não gostaram, porque tem coisas que são sistematicamente apagadas na fan fic, tem coisas que são corrigidas, morrem personagens que todo mundo chora um monte e aí tem várias histórias que esse personagem não morre, por exemplo. Isso é um indicativo, né? Então, pra mim, o trabalho com a fan fic é um trabalho de recepção, né, da gente entender como os leitores estão lendo, estão entendendo a obra original. Então esse é, digamos assim, o cerne da minha pesquisa.

PET: Nossa, muito interessante mesmo!

Maria Clara: Eu acho! (risadas)

PET: A Simone de Beauvoir tem uma frase super famosa que é “ninguém nasce mulher, torna-se mulher”. Como que a gente pode associar essa frase com as personagens da Jane Austen?

Maria Clara: Isso é uma questão bem específica, né? É a base do estudo de gênero. A Simone de Beauvoir, quando ela falou isso, que ninguém nasce mulher, a gente se torna, foi uma questão de que essa diferenciação entre homem e mulher não é um dado biológico associado ao sexo, àquilo que a gente tem no meio das pernas, ou ao nosso DNA, com um cromossomo, mas basicamente com a forma como nós somo criados. Então é muito mais uma diferenciação cultural do que biológica. Nesse sentido, a gente pode entender a representação das personagens femininas em qualquer obra literária, não só da Jane Austen, como registros de como as mulheres eram construídas dentro dessa categoria “mulher” naquele período. Então a gente pode analisar as personagens femininas em Orgulho e Preconceito, por exemplo, entendendo que tipo de educação elas tinham, qual o papel que era esperado delas dentro daquela sociedade, qual comportamento que elas tinham que ter, qual comportamento que elas não podiam ter. Então um exemplo mais óbvio disso é a questão da sexualidade, as mulheres não poderiam ter nenhum tipo de desejo sexual, não poderiam receber nenhuma informação, nenhum tipo de educação sexual e elas só poderiam ter sexo, obviamente, relações sexuais depois de casadas, porque o marido iria controlar esse aspecto. Então quando uma personagem, por exemplo, foge com um homem lá antes de casar, isso é um escândalo. Não só porque, obviamente, ela ficou morando com ele algumas semanas e aí obviamente eles romperam esse pacto esperado da sociedade em que você não pode fazer nada antes de casar, mas também é um indicativo de que essa personagem, ela tinha, sim, desejo. Ela tinha, sim, atração. Então a fuga de uma mulher a se casar é chocante também por conta disso, porque indica que ela está quebrando com esse comportamento esperado dela. Então a gente analisa essas personagens pra entender esse “construir mulher”, pegando a frase de Simone de Beauvoir, em determinados períodos. O que também é interessante pra, numa maneira reversa, confirmar o argumento da Beauvoir porque a gente percebe que, comparando personagens femininas em diferentes obras literárias de diferentes momentos históricos, a gente perceba a diferença da cultura e as diferenças nesse “construir a mulher”, o que reforça o argumento de que ninguém nasce mulher, a gente se torna, nós somos educadas. Essa educação diferente de cada período é um testemunho, digamos assim, de como isso não tem nada a ver com essência ou natureza, porque senão nós seríamos todas iguais. Senão eu, vocês, a minha mãe, a minha vó seríamos absolutamente iguais às mulheres retratadas nos romances da Jane Austen de duzentos anos atrás, na literatura medieval, na literatura clássica grega, mas como essas mulheres são muito diferentes, isso mostra que na verdade é a cultura que faz de nós o que nós somos e não uma informação biológica.

PET: Então, a última pergunta. Que conselho você daria para alguém que quer pesquisar sobre os estudos literários, em especial, a representação das personagens femininas?

Maria Clara: Nossa tem tanta… (risada). Bom, o meu primeiro conselho, obviamente, é: leia mulheres (#leiamulheres). Por quê? É óbvio que a gente pode estudar a representação da mulher em romances escritos por homens, mas aí a gente tem sempre que lembrar que é um homem representando aquilo que ele não é. E a gente pode até pensar que existe uma relação de alteridade também entre homens e mulheres. Quando a gente lê escritoras mulheres, a gente passa a entender como elas estão provavelmente se representando; o que elas consideram importante, o que elas consideram errado, o que elas concordam que é certo e que é errado e, aí, o que elas estão observando sobre a sociedade delas em relação às mulheres, em relação a si próprias, talvez. Então eu acho isso muito mais interessante. Além do que, tradicionalmente, o cânone literário é muito masculino e a gente tem que ficar sempre brigando, resistindo a essa imposição de achar que um curso de literatura, por exemplo, tem que tratar primeiro de autores homens e depois colocar mulheres, se tiver tempo. Por que a gente não inverte? Vamos ler só mulheres e, se der tempo, a gente lê algum homem. Mas então o meu primeiro conselho é leia mulheres. O meu segundo conselho seria ler sobre os estudos de gênero. Então, assim, tem vários textos hoje que são vários manifestos, digamos assim, que podem ser portas de entrada para essa reflexão. Tem o “Sejamos todos feministas”, de Chimamanda Adichie, eu não vou falar assim “ah, vai ler Simone de Beauvoir logo de cara”, porque é um texto meio pesado, né? (risadas) Talvez fosse melhor ir com calma, mas um outro texto de introdução aos estudos feministas, aos estudos de gênero bem tranquilo de ler é o “Um teto todo seu”, da Virginia Woolf. A gente pode pegar também livros mais recentes que combinam a questão de gênero e raça, por exemplo para entender o que é o movimento feminista negro, que aí é toda uma outra série de questões. Então eu começaria também, em paralelo com esses pequenos ensaios escritos por mulheres, que podem ajudar quem quer entrar nessa área a perceber como funciona os estudos de gênero e aí conforme você também vai lendo literatura, em paralelo a esses ensaios, um dia vai dar um “click” e você vai conseguir colocar as duas coisas. Não desista! Esse “click” acontece pra todo mundo e vai acontecer pra você. (risadas)

 

Além disso, a professora Maria Clara separou, para nós, dicas de leituras super essenciais para as pessoas que estão interessadas em estudar a área de representação feminina em obras literárias, além disso, temos também várias indicações de livros que são muito importantes para nosso crescimento individual.⁣

Confira abaixo!