Profissões em Letras: A Tradução e o Tradutor

Profissões em Letras: A Tradução e o Tradutor

 

A tradução sempre esteve presente em nosso cotidiano e é um processo comum mesmo antes da era da tecnologia ou filmes e séries. Linda Hutcheon, em seu livro Uma teoria da adaptação (2011), enfatiza que “As adaptações estão em todos os lugares hoje em dia: nas telas da televisão e do cinema, nos palcos do musical e do teatro dramático, na internet, nos romances e quadrinhos, nos fliperamas e também nos parques temáticos mais próximos de você” (p. 22). Dessa forma, devido à sua prevalência, é fundamental compreender a tradução como um produto do trabalho do tradutor.

A discussão sobre a natureza da diferença entre original e tradução é uma questão central nos estudos de tradução. Muitos teóricos contemporâneos, especialmente dentro do campo pós-estruturalista, têm questionado as visões tradicionais que diferenciam rigidamente “autor” de “tradutor” e “original” de “tradução”. Segundo essa visão, essas distinções são relativas e, em alguns casos, quase abolidas.

O autor Paulo Britto, em seu artigo “Tradução e criação” (1999) na busca de definir a relação entre a obra original e seu produto traduzido, procura definir os conceitos de original e tradução. Em primeiro lugar, o conceito de original pressupõe a existência de um sujeito criador autônomo que produz um texto de forma consciente e intencional, partindo de uma matéria-prima não textual, como suas experiências de vida. Já na tradução, há um equilíbrio constante entre momentos de autonomização (quando o texto se afasta do original) e aproximação (quando o texto se alinha novamente com o original). Esse equilíbrio é mantido através de movimentos corretivos. Por exemplo, se uma tradução se distancia muito do original, há uma tendência de corrigir esse afastamento para manter a fidelidade ao texto original. A primeira fonte, ou o original, exerce um efeito de controle constante sobre a tradução. Sempre que a tradução se afasta excessivamente, o original a “puxa” de volta.

Mesmo aceitando muitos argumentos pós-estruturalistas, que questionam as distinções tradicionais entre original e tradução, o autor reforça que é possível demonstrar que existem diferenças claras entre traduzir e criar. A tradução está sempre em diálogo com o original, submetida a um controle que busca manter a fidelidade. A criação, por outro lado, busca se libertar das influências diretas para alcançar maior originalidade e autonomia, como salienta Hutcheon:

 

Todos esses adaptadores contam histórias a seu próprio modo. Eles utilizam as mesmas ferramentas que os contadores de histórias sempre utilizaram, ou seja, eles tornam as ideias concretas ou reais, fazem seleções que não apenas simplificam, como também ampliam e vão além, fazem analogias, criticam ou mostram seu respeito, e assim por diante. As histórias que contam, entretanto, são tomadas de outros lugares, e não inteiramente inventadas. (2011, p. 24)

 

Faz-se válido também perceber que uma das diferenças mais marcantes na dualidade entre traduzir e criar é a sobriedade da tradução, que não é vista tão fortemente na criação, uma vez que esta se desdobra muitas vezes de maneira irregular. Enquanto que a tradução se apresenta de maneira mais fria, muito mais do que criar, o traduzir é um desmontar o original e encontrar as peças adequadas para remontar a tradução, sem se distanciar excessivamente do original. É isso que destrói a ideia de equivalência entre os textos de tradução e criação. 

Os processos e conceitos são verdadeiramente distintos e, ainda que contestados e considerados relativos, apresentam-se quase como inversos em sua execução. O traduzir, por mais complexo que seja, nos é quase intrínseco, seja com a concepção atual de transmitir uma mensagem em diferentes veículos de comunicação ou idiomas, seja no mais simples colocar pensamentos em palavras. É o que torna o trabalho do tradutor tão diverso do ato de puramente criar. 

Falar de tradução ou do papel do tradutor, implica também em falar do seu produto. Dessa forma, a tradução surge não como um fruto inferior ao canônico ou original, mas uma obra também original, contando seu conteúdo e história a seu próprio modo. A diferença entre a tradução e a obra original é multifacetada. A obra original é o ponto de partida, carregando a intenção direta do autor, suas nuances culturais, estilísticas e linguísticas específicas. Ela reflete a visão do autor em seu contexto original, incluindo elementos como jogos de palavras, referências culturais e o ritmo da linguagem que são intrínsecos à língua de origem.

Por outro lado, a tradução é uma interpretação dessa visão, moldada pelo tradutor, que atua como um mediador entre culturas e idiomas. O tradutor precisa capturar o sentido, o tom e a intenção do texto original, ao mesmo tempo que adapta esses elementos ao contexto cultural e linguístico da língua de destino. Esse processo exige decisões criativas e interpretativas, pois algumas expressões, referências e estruturas gramaticais não têm equivalentes diretos em outros idiomas.

Dessa forma, a tradução se torna uma obra original em seu próprio direito. Ela pode oferecer novas perspectivas e interpretações que talvez não fossem percebidas na leitura do texto original. O tradutor, ao recontar a história, inevitavelmente insere um pouco de si mesmo e de sua compreensão do texto, o que enriquece a experiência do leitor com uma dimensão adicional.

 

REFERÊNCIAS:

BRITTO, Paulo Henriques. Tradução e criação. Cadernos de tradução, v. 1, n. 4, p. 239-262, 1999.

HUTCHEON, Linda. Uma teoria da adaptação. Trad. André Cechinel. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2011. 280p.